A poucos meses de possível virada política, avança esforço para resgatar uma estratégia essencial ao SUS – porém diminuída pelo “teto de gastos”. Seminário da Abrasco revela efeitos devastadores do PNAB, imposta em 2017
Por Gabriel Brito
O que a pandemia de covid-19 revela sobre a rede brasileira de atenção primária em Saúde (APS)? Que gargalos ficaram claros, ao longo do enfrentamento da doença? Como corrigi-los e – mais que isso – reconstruir uma estratégia fundante de toda a concepção do SUS? Na última sexta-feira (19/8), um seminário da Abrasco, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, debruçou-se sobre o tema. Realizado online, teve a presença de pesquisadores como Aylene Bousquat, Angélica Ferreira Fonseca, Nésio Fernandes e Adriano Massuda. Seu foco era examinar o estudo Desafios da Atenção Básica no Enfrentamento à pandemia da covid no SUS – 2ª onda, publicado em dezembro último.
Fruto de pesquisa que envolveu 945 Unidades Básicas de Saúde, nas cinco regiões do país, o trabalho foi apresentado por Aylene Bousquat. Professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, ela lembrou que o estudo visa traçar comparativos e reflexões “no consultório e no território”, de forma associada às condições cotidianas objetivas de cada localidade. “Não é uma dicotomia, ambos são importantes. Precisamos de APS integral e integrada, resolutiva, territorializada e comunitária”, frisou Aylene. As entrevistas realizadas nas UBSs, reportou ela, levantaram dados impressionantes sobre a carência de insumos básicos no combate à pandemia. Começava nas necessidades mais essenciais. 55% das unidades não tinham equipamentos de proteção individual (EPI) em quantidades suficientes e apenas 60% tinham a máscara KN-95, tida como a mais eficaz na proteção das vias aéreas.
O estudo confirma o desmonte estrutural do sistema de saúde – a despeito de aumento circunstancial de investimentos públicos no setor no contexto da pandemia – lembrou Nesio Fernandes, secretário de saúde do Espírito Santo e atual presidente do Conass (Conselho Nacional das Secretarias de Saúde).
“O desmonte da APS e dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) se fez sentir na pandemia e teremos de superar esse aspecto gerador de desigualdades. Devemos avançar na territorialização da atenção especializada, conectando atenção primária com terciária, hospitalar”, avaliou ele.
Isso porque o estudo constata que a maioria das UBS tem apenas uma Equipe de Saúde da Família, além de observar a progressiva diminuição dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), fundamentais para a conexão do consultório com o território e acompanhamento de pacientes.
Adriano Massuda, professor e ex-secretário de Saúde de Curitiba, destacou os efeitos nocivos do novo PNAB – o Plano Nacional de Atenção Básica organizado pelo governo Temer em consonância com o chamado “teto de gastos” que a Emenda Constitucional 95 fixou. Até o PNAB, contou ele, “criamos noções como clínica ampliada, integrada, que incorpora questões sociais próprias e cria as condições reais de universalização. Esse modelo modificou a situação da saúde no país”, No entanto, está sendo revertido desde 2017. Desde a implantação do “novo” plano, vêm diminuindo as Equipes de Saúde da Família, o que incide diretamente no acesso das parcelas mais pobres da população ao sistema de saúde. Uma medida ineficaz até do ponto de vista econômico, uma vez que se trata do contato inicial de muitos brasileiros com o serviço em saúde. “O território é onde se fazem ações que se antecipam ao adoecimento”, explicou Angélica Ferreira Fonseca, pesquisadora da Fiocruz, com passagem pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro e o Ministério da Saúde.
O estudo publicado em dezembro também levantou peculiaridades regionais, além de suas desigualdades. Ficou patente que a presença territorial, em suas dimensões ditas coletivas, nas regiões Norte e Nordeste foi mais importante na prevenção do vírus, além de as UBS terem feito atendimentos de casos médios e graves em quantidade maior nas cidades onde só existe a estrutura primária.
A importância da recuperação da APS é óbvia em múltiplos sentidos. Mas Aylene Bousquat fez questão de ressaltar seu papel nas próprias pandemias. “Os sistemas de saúde precisam estar prontos para novos desafios, pois é improvável que nossa geração não enfrente novos surtos viróticos”, alertou ela. Isso exigirá o reforço das ESF, cuja diminuição acarreta uma imediata sobrecarga na força de trabalho do SUS, uma vez que as equipes remanescentes lidam com uma quantidade maior de usuários a monitorar.
“Não dá para a APS cumprir seu papel da forma desejável enquanto as equipes lidarem com 3 ou 4 mil pessoas. Resistimos à pandemia com os leitos de UTI, mas a derrotamos com atenção primária”, sintetizou Nésio Fernandes.