CRÔNICA

Por Paolo D’Aprile

 

Moldados como argila, surgem de suas mãos na lentidão de espaços imensos, na vastidão das pausas, sinais imperceptíveis. Irregulares, dispersos, rarefeitos, quase ao acaso, gotas na areia, acumulam-se na lembrança de forma insidiosa, debilmente fátuos como utopias nunca imaginadas, catedrais de Gaudí, novas terras a serem descobertas no assombroso mar oceano da música: o piano de Herbie Hancock. Suspenso entre as teclas pretas e as brancas, decide mergulhar nos interstícios do som, penetrando as fissuras entre as notas, fecundar a música. E naquele momento a fórmula dos mestres, alicerce do jazz, desaparece, desintegrando-se no espaço sideral do olvido que seremos, como se nunca tivesse existido, como se nunca tivesse tocado.

Nota por nota, frase por frase suas mãos constroem e dão vida aos seus próprios precursores, mortos e sepultados há décadas. De suas mãos nascem e renascem os antigos monumentos, os clássicos, os mestres fundadores. Suas mãos edificam o passado, suas mãos inventam a história, imaginam lonjuras nostálgicas, um caminhar adormecido no sonho do seu próprio vagaroso andar. O gospel de Harlem, o blues sujo do gueto, o sax de Charlie Parker, o piano de Bud Powell, por mares nunca dantes navegados, chegam às etéreas e inúteis visões harmônicas de Claude Debussy, capazes – agora sim – de produzir sua mais verdadeira beleza. O impressionismo francês, nascido e crescido como pegajosa borboleta noturna, encontra finalmente seu maior sentido: transformado em cromatismo jazzístico, em cluster raivoso, em blue note suspensa no vazio em busca de uma resolução que nunca chegará, derradeira afirmação da identidade do povo. Não mais contradições, mas o avesso do avesso do avesso, na alternativa constante da escolha, negação negada no jazz onde, desde sempre, proibir está terminantemente proibido. Somente assim a afirmação individual do artista pode prevalecer sobre a intocável edificação erudita, cujos muros sempre excluem, separam. Herbie Hancock corta as amarras da camisa de força, libera Maurice Ravel para que possa dançar com as estrelas negras do blues.

 

Assim é Herbie Hancock: inventor de precursores, fundador de civilizações musicais, libertador da linguagem, revisor de seu próprio futuro.

Desde sempre entre os maiores, olhos míopes arregalados sobre o presente, reproduz o que ouve na academia e principalmente nas ruas, aglutinando experiências, abrindo espaços, criando música e escândalos na cara dos puristas de todas as tendências.

Nas minhas mãos um dos seus discos magistrais, observo a contracapa, leio: Herbie Hancock escreveu cada faixa de forma que toque como uma improvisação coletiva. Em muitas delas não há melodia alguma para amalgamar os acordes transformados em clusters atonais, de tal forma que os instrumentos de sopro possam sobrepor as notas que preferem tocar.

É isso aí.