CRÔNICA
Por Guilherme Maia
Homenagem ao grande João Bethencourt
e à liberdade
Chiquinho tinha vinte e quatro anos e era idolatrado por sua avó, senhora octogenária frequentadora da igreja do Poço Fundo do Jacó, adepta do “está-um-caos- mas-Deus-proverá”. Iniciou seus estudos aos onze anos, para, assim, ser alfabetizado na escola de sua igreja. Educado na mais estrita e abençoada restrição: sua vida era resumida a ir da escola para casa e vice-versa.
Dadas estas características iniciais que, por via de regra, enunciam uma espécie de síntese existencial do rapaz, passamos a relatar uma desastrada ocorrência que abalou sua reduzida rotina.
O dia era 25 de dezembro, o ano, 2028. Finalmente completara o curso de ciências aprofundadas no ramo da epistemologia oculta do Deus-me-livre na faculdade da Transubstanciação Dolarizada de Belford Roxo. Encontrava-se preparado, portanto, para assumir a função de balconista na loja de conveniências de um tio.
Que tempestade se abateu na casa de Chiquinho devido a este trabalho! Sua avó – matriarca a essa altura já nonagenária – não aceitava o contato com a mundanidade daquela loja mantida pela “ovelha negra” da família: justamente aquele que vivia no Paraguai para fornecer artigos ao seu comércio.
A matrona encrencara também devido à morte de três clientes por ingestão de Whisky “batizado”.
Pois bem. Chiquinho era um santo. Fazia vista grossa ao Whisky – que continuava batizado – para honra da prosperidade predestinada de seu tio e, no fundo, porque conseguia dinheiro para alimentar seu novo e herético hobby. Seu desgraçado hobby.
Havia no fim da rua do Perdeu um velho cinema. Alguns grupos de profunda espiritualidade tentaram desde mil novecentos e noventa e oito comprar o estabelecimento para montar a trilhonésima igreja do bairro; o dono disse que não o venderia porque amava o cinema; duas semanas depois, recebeu uma pedrada na têmpora esquerda (provavelmente uma arrebatação de fé): por fim, não foi dissuadido pelas vias sagradas. Era um homem decidido e possuía muito amor pelo cinema mesmo.
Esse era o último cinema que restara em todo o município e Chiquinho amou a Sétima Arte quando assistiu ao filme Murderssigun, quer dizer, Murder’s Gun – tocante filme sobre um louco que sai matando todo mundo no condado do Bronx em Nova York. A sutileza como o sangue jorrava da jugular ou da carótida para a tela emocionava os sentimentos mais piedosos de nosso protagonista e, com isso, passou a ser um aficionado no que foi convencionado ser o mais alto padrão de uma obra cinematográfica: a morte.
Aí então aconteceu!
Todos os filmes assistidos eram contidos, sensíveis e até “cristãos”. Assim foi a impressão sobre filmes como O Massacre de Todo Mundo, grande sucesso de Keith Machonvisky; A Carroça da Possessão do grande George Killermen; dentre tantas obras-primas. Chiquinho era levado às lágrimas observando aquelas vísceras expostas, pendendo sobre corpos mutilados; todo aquele rol de armas em desfile. Nada atentava contra a moral e aos bons costumes!
Porém aconteceu aquilo!
O filme que estava em cartaz naquela sexta-feira treze se chamava Açougueiro de Castro. Era o relato de uma onda de assassinatos no epicentro gay do mundo: o bairro de Castro em San Francisco. A velha fórmula “soldado que foi para o Afeganistão-perdeu as pernas em uma explosão- não teve assistência médica ou psicológica- enlouqueceu- saiu matando todo mundo que via pela frente” estava perfeita em conformidade com a grande arte. Porém, antes da vigésima matança promovida pelo Açougueiro, no canto direito apareceu aquela imagem perturbadora: dois homens se beijando!
Aquilo aterrorizou Chiquinho de tal modo que ficou boquiaberto de tanta perplexidade. Pálpebras distendidas, mãos trêmulas e molhadas, demorou alguns minutos para que aquele sentimento pudesse ser identificado. Uma mescla de estupor com a névoa da incógnita tomou-o de assalto e, com a cabeça agora feito um pingente balançando sobre o vácuo árido de um abismo, ele entendeu o volátil significado da dúvida.
– Agora entenda… – surpreendido ficou com a sua própria voz que acabara de iniciar um diálogo com ele mesmo.
– Cala a boca, imbecil! – Irrompeu tonitruante um expectador a três cadeiras atrás.
Essa tentativa de diálogo íntimo e paradoxalmente exposto foi abortada logo de início. Adequada foi a continuidade, ou seja, a voz interna passou a se pronunciar para dentro e não mais para o meio ambiente do cinema.
– O diretor desse filme é o grande Charlie Fingerintheye, um dos maiores mestres! Um cara que trouxe ao mundo primores como “Comi seu Fígado no Jantar” e “Com as mãos é que se Enforca” não comete erro e sabe de tudo! Se dois homens se beijando aparece num filme desses, isso deve pelo menos existir!
A pergunta que não queria se calar na cabeça de Chiquinho era: existe beijo entre dois homens no mundo? Isso acontece?
Terminado o filme, todos os expectadores saíram da sala de projeção deixando-o só e inculcado com toda aquela nova realidade que se abria a seus olhos. Havia em tudo aquilo um sentimento de completude ao mundo que cercava sua existência desde seu nascimento. A vida era mais do que tinha percebido até aquele momento: além de igrejas e lojas de produtos paraguaios, acontecia de dois homens se beijarem.
Andando pela rua do Perdeu às dez e meia da noite, o que, por óbvio, ocasionou a perda do relógio e do par de tênis após dois assaltos consecutivos, Chico começou a meditar sobre sua nova experiência querendo chegar a alguma conclusão sobre aquilo. Se existe no mundo dois homens que se beijam, isso é uma realidade, então, deve ser bom para quem o pratica.
No fim, já estava entendendo o beijo gay como pertencendo à Criação assim, como era da Natureza, era de Deus também. Portanto, tudo continua na mais bela paz predeterminada pelo Todo-Poderoso.
Como a vida é bela em todos os seus matizes e acordes…
Em sonhos, viu um mundo alegre e de irmanação universal. Um mundo harmonizado com coelhinhos saltitando em paisagens bucólicas de bosques verdejantes onde se ouvem quartetos de cordas de Haydn e Schubert em estereofonia pelo ar.
Não havia mais adoração ao dinheiro ou lutas inumanas por ele. Não havia mais aquelas pessoas que se deitavam no chão da calçada e que provocavam estupefação sempre que via seus andrajos e mau cheiro no trajeto que fazia de casa para o trabalho.
Na manhã seguinte, com os olhos transbordando de contentamento abraçou sua avó e o tio que acabara de chegar do Paraguai. Sorrindo deu o “bom-dia” e o “Deus-abençoe” habitual e disse que aquele seria um dia muito feliz, razão por que exclamou que todos deveriam se beijar incluídos aqueles homens que gostam de beijar outros homens…
Trovão! Ciclone! Desastres naturais! Terminal da Central de Japeri na hora de ida e volta ao trabalho! Nada se compara à estrondosa reação da avó de Chico, esta pulou da cadeira como não fazia já há sessenta anos; brandiu sua bengala no ar como uma acróbata de sinal de trânsito; aos berros xingou seu neto de todos os palavrões possíveis – alguns, no entanto, tinham perdido seu uso há algumas gerações devido à sua longevidade.
No momento em que começou a jogar os pratos em direção a Chico, este teve de sair correndo de casa. Na rua, depois de ser assaltado, seu cordão de níquel levado por ladrões, foi ter com o Armênio, o dono da farmácia localizada na calçada em frente.
– Seu Armênio…. Minha avó está muito alterada, não sei se é por causa da combinação de omeprazol, diclofenaco e diazepan que o senhor anda vendendo para ela.
– Mas essa combinação desde 2023 já não causa mais mortes em idosos, os velhos já criaram resistência natural a isso! Não pode ser! Alguma coisa deixou sua avó nervosa ou espantada?
– Não! Apenas acordei sorri para ela e disse que hoje está um dia tão lindo que todos deveriam se beijar, inclusive homens que gostam de se beijar uns aos outros!
O dono da farmácia se encolerizou de tal modo que, com o rosto afogueado, partiu para cima de Chico. Os dois se atracaram e rolaram para o meio da rua. Nesse momento a avó já estava do lado de fora com um bastão de beisebol (sabe-se lá de onde surgiu esse utensílio); e Seu Armênio gritava: “Socorro! Tarado! Lincha tarado! ”
Acorreram de todos os cantos vizinhos portando tochas, foices e ancinhos; Chiquinho consegue se desvencilhar e corre alcançando a frente da turba enfurecida.
Já em sua cola está uma viatura da polícia; sobre o teto apoiados na sirene estão o padre da paróquia (tinha o hábito de dormir de quinze a dezesseis horas por dia e seu sobrepeso amassou a calota do veículo) e o pastor que vinha aos gritos – estes mais agudos do que o do alarma da sirene policial; – o perseguido consegue virar uma esquina obscura e despistar a todos.
“O que pode ter acontecido? O que eu fiz para estarem com tanta raiva atrás de mim? ” – Atônito se perguntava reiteradas vezes.
Tropeça sem ver em um mendigo deitada e coberto pela penumbra do beco; este resmunga e, logo, por solidão, puxa conversa com Chiquinho; Chiquinho volta a dizer que o dia era lindo e todos, sem exceção, deveriam se beijar; o mendigo ergue um porrete e desfere um golpe que, por muito pouco, não o atinge.
-“Você é um ignorante filho da puta! Eu perdi tudo o que tinha, minha família, meu emprego e carro por causa disso! Descobri que amava um outro homem! Se eu perdi tudo, você deve ser morto por propagar essa obscenidade! ”
Fugindo dessa última cena, escorrega em um rato morto; aos trambolhões rola por um barranco e cai num rio, em meio a entulhos, lixo, pedaços de corpos apodrecidos; some logo em seguida.
Hoje, mudou seu nome para Hepático (em homenagem às consequências do contato com o que encontrou naquele rio), é um próspero predestinado comerciante ambulante do Calçadão de Caxias e aprendeu de uma forma cruciante que
BEIJO GAY EXISTE SIM!