ARTES VISUAIS

Por CWeA Comunicação 

 

Conhecido principalmente por seu trabalho com imagens criadas a partir de uma datilografia extrema, o artista e poeta investiga a história do Brasil, onde memória, esquecimento, identidade e a palavra são suas ferramentas para pensar em um futuro possível para o país, e para o povo brasileiro, “ainda em formação”. Esta primeira grande individual do artista nascido em 1991 no Vale do Araguaia, região de fronteira entre Goiás e Mato Grosso,  e atualmente morando em São Paulo, reunirá sua produção inédita e recente, em vários suportes. Símbolos nacionais, máquina de escrever, digitais, primeiros registros históricos do povo brasileiro são usados neste processo crítico que compõe sua poética.

 

Galeria Movimento, Gávea, Rio de Janeiro

Até: 30 de julho de 2022

Texto crítico: Divino Sobral

Entrada gratuita

Apoio: Becks

 

A Galeria Movimento apresenta a exposição “Re-Utopya”, com obras recentes e inéditas do artista Hal Wildson, nascido em 1991 no Vale do Araguaia, região de fronteira entre Goiás e Mato Grosso, e atualmente morando em São Paulo. Acompanha a exposição um texto crítico do curador Divino Sobral.

Embora seja a primeira individual de Hal Wildson, seu trabalho já pode de alguma forma soar familiar para o grande público. Sua obra “República da Desigualdade – Meritocracia seja Louvada” (2018-2020) foi vista em rede nacional na abertura do documentário especial “Mães do Brasil”, produzido pela Favela Filmes e KondZilla Filmes, com direção de  Kelly Castilho e John Oliveira, e exibida pela Globo em dezembro. Naquele trabalho, imagens de arquivos nacionais de trabalhadores brasileiros, fotografia autoral e registros da infância do artista são plasmadas em notas de “zero real”. 

E um vídeo poético seu, feito durante o processo de criação da obra “Singularidades” (2020/2022), viralizou, e alcançou a marca de mais de cinco milhões de visualizações no Instagram, sendo compartilhado também por artistas, como Vik Muniz. O vídeo postado em sua página era acompanhado de um pequeno texto: “Existe em nós um Brasil que vale a pena acreditar! Somos um povo que nasce e se encontra no desencontro das suas multiplicidades, que ultrapassa o tempo em processo de construir e fazer a si mesmo. Existe em nós muitos de nós, Brasis em construção e reconstrução, e é por acreditar que faço da minha arte uma semente de esperança, um martelo que quebra, um tijolo que constrói. Singularidade, Brasil, identidade”. “Foi surpreendente”, comenta Hal Wildson, “porque pessoas de vários países se conectavam com a poesia do trabalho. Cada um em seu lugar, mas todo mundo sente alguma coisa. Estou falando de ser humano, de nossa origem”. 

A obra “Singularidades” estará na exposição. É composta por 441 digitais do artista em tamanho real, coletadas no ateliê, nas marcas deixadas durante a produção do trabalho. E cada digital se mistura a um registro histórico do povo brasileiro – mestiços, como o próprio artista, indígenas, negros – de arquivos nacionais, coletados na internet. “São retratos de identidade do Brasil que nos ajudam a olhar nossa história”, diz. “Este trabalho surge desta vontade, deste desejo de entender para onde vai o povo brasileiro. Em momento de crise – crise na saúde, crise na democracia, crise institucional, crise dos símbolos – como reconstruir o Brasil se o próprio povo não se reconhece mais? Se o próprio povo não sabe que existe possibilidade de um futuro?”, indaga.

 

NINGUENDADE E NINGUENTUDE

Companheiro inseparável do artista há dois anos é o livro “O povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” (Companhia das Letras, 1995), de Darcy Ribeiro (1922-1997). “Este trabalho está ancorado neste livro, e tem um pouco da vontade de resgatar o desejo do que é ser um povo brasileiro, esse povo ainda em formação”, conta Wildson. Ele criou a expressão “ninguentude”, a partir do termo cunhado por Darcy no livro – ninguendade –, a qualidade do brasileiro primordial, filho de pai europeu e mãe indígena. “Este primeiro brasileiro não tinha pai e não tinha mãe”, explica Wildson. “Pela cultura dos povos originários, quem deveria cuidar desse ser era o pai, que estava na Europa e achava que a mãe seria a responsável. Nasce este primeiro brasileiro sem saber quem era, Na margem de ser alguém e ser ninguém. Não era indígena nem europeu. Um ser em formação”. Aos catorze anos, quando morreu sua avó que o criou, Hal Wildson viu que “tinha que se virar e estudar, para me livrar dessa ideia de ser fadado a ser ninguém, esta sina”. “Nesse ponto a minha história e a visão crítica de Darcy Ribeiro sobre a história e formação do Brasil se encontram: ‘como um filho sem pai e sem mãe pode ser alguém e fugir da ninguendade. Assim também foi o ‘primeiro brasileiro’: filho de ‘ninguém’, fruto da violência”, diz. “O entendimento da ninguendade e a busca pela identidade, através desses documentos que delimitam a nossa história, marcam a minha jornada individual e se transforma em pesquisa artística na medida em que a arte se torna um plano de reescrita e escrita da história e retomada de identidade para existir-resistir à ‘ninguentude’”.

 

RE-UTOPYA

Uma fotografia de uma criança enrolada na bandeira brasileira em cetim onde se lê “Re-Utopya” bordada no centro, ao invés de “Ordem e Progresso”, recebe o visitante na exposição. Com 100 x 67 cm, a obra “Re-Utopya – Estrada para Pindorama” (2021), terá parte do valor de sua venda revertida para a aldeia Rio Silveira, da etnia guarani mbyá, em São Sebastião, litoral paulista. Foi lá que a fotografia foi feita, e onde o artista teve a ideia de “Re-Utopya”, que lhe apareceu em um sonho, e atravessa toda sua produção recente. 

“Criei a bandeira ‘Re-Utopya’, em cetim, e levei pra lá para fotografar. Não porque eram indígenas, mas porque era a família que me acolheu naquele momento. A família que eu queria projetar esse futuro de Brasil.A madrinha e o padrinho estavam fazendo massa de barro para retocar a parede. Era um dia tranqüilo, uma vida tranqüila, digna, plantando, colhendo. Queria este sentimento. Como a ideia surgiu lá, eu queria fazer as primeiras fotos lá”, explica Hal Wildson. 

No início de 2020 ele se mudou para São Sebastião, e em seguida foi surpreendido pela pandemia. Ali tomou contato com a aldeia Rio Silveira, ao levar apoio e alimentos para as famílias indígenas, junto à Rede Brotar. Fruto de uma família destruída pela cultura violenta, “coronelista”, do Vale do Araguaia, onde era comum ter grupos familiares envoltos em abusos sexuais, vícios, abandono, Hal Wildson se sentiu acolhido na aldeia tupi-guarani, onde ganhou uma família – “um padrinho, uma madrinha, afilhados” – e foi batizado, recebendo o nome “Tupã Mirim”. Ele já havia convivido com indígenas no Araguaia, terra do povo xavante, invadido e vitimado pelo garimpo. “Eles eram muito discriminados, pois já existia o abandono social na cidade. Eu como criança não sabia por que se dava aquilo. Depois entendi que era por causa do garimpo, pela forma como a cidade se estruturou”, lembra. 

 

TEKO PORÃ E UBUNTU

Na aldeia tupi-guarani em São Sebastião, ele sonhou com a expressão Re-Utopya escrita em urucum e dendê, e“da palavra e seu simbolismo vi uma bandeira do Brasil, mas entre as estrelas se escrevia: ‘tekoporã e ubuntu’, substituindo o slogan positivista ordem em progresso”. “Resumidamente, tekoporã expressa o bem viver em comunidade, uma busca por equilíbrio nas relações entre as pessoas e o meio ambiente, capaz de compreendê-lo como um ser vivo e ativo. Ubuntu significa ‘eu sou porque nós somos’. Eu sou humano, e a natureza humana implica compaixão, partilha, respeito, empatia”, escreveu o artista em dezembro de 2021, no Manifesto Re-Utopya. Daí pensou que, se não era mais possível apagar o passado do país, que fosse possível sua reinvenção. 

A bandeira “Re-Utopya” (2021), em bordado sobre cetim, com 87 cm x 130 cm, também estará na exposição.

 

“MONUMENTO À INDEPENDÊNCIA” (2020/2022)

Tendo como fundo uma parede vermelha, a instalação “Monumento À Independência” (2020/2022) é composta por cinco obras, que são releituras de bandeiras do Brasil que já existiram ou ficaram como projetos. “Pra quem é esta independência?”, questiona o artista. “Recrio essas bandeiras com uma ideia de tentar atualizar esse projeto de Brasil em andamento. O que nesses últimos 200 anos o Brasil tem de fato lutado para se tornar independente? A liberdade chegou pra quem no Brasil? Quando ele se tornou independente no século passado foi pra se tornar uma monarquia, e ainda tendo pessoas escravizadas, enquanto muitos países se tornaram independentes já como uma república. Isso diz muito sobre a nossa história. Esse colonialismo se perpetuou na república, e ajudou que se tornasse a república da desigualdade, que também é um tema dos meus trabalhos”, diz. 

“Olho para o passado colonial do Brasil e vejo como esse projeto nos fez chegar ao Brasil de agora. É esse Brasil que tem a corrupção, que tem as milícias, violência, garimpo tirando terras indígenas”, salienta. “Por isso utilizo esse símbolo das bandeiras, que também é uma metáfora sobre como, nesse momento de crise de identidade do Brasil, levantar bandeira se tornou uma forma de tentar lutar contra esse passado, e quem sabe construir um futuro mais justo”.

“RE-FLORESTAR UTOPYA” (POLÍPTICO, 2022) 

Enquanto no “Monumento à Independência” o artista reflete sobre o passado, “nessa distopia de a gente estar vivendo este passado agora, colonial”, em “Re-FlorestarUtopya”o olhar é para o futuro. “Tenho o passado que eu quero transformar, e não tem como construir o futuro melhor sem olhar para o passado. Olho para este passado e ao almejar o futuro utópico eu crio a Re-Utopya”, explica Wildson.

Ele conta que levou a bandeira “Re-Utopya” para o Parque da Independência, “esse lugar onde simbolicamente foi proclamada a independência, ‘às margens do Ipiranga’”, hasteou a bandeira em uma árvore plantada no Parque, e fotografou e filmou ao longo do dia. Depois ele fez intervenções em nanquim sobre as fotografias, desenhando raízes em preto e vermelho, “mais uma vez fazendo analogias ao teko Porã e Ubuntu, que são essas raízes que quem sabe podem transformar o Brasil em um país mais justo”. “Baseado nessas filosofias e não em ordem e progresso”, reafirma. 

SÉRIE “AFLUENTES”

Nesta série, iniciada no ano passado e produzida até hoje, Hal Wildson cria quatro pinturas em acrílica sobre papel, com 110 x 110cm, em que rostos de brasileiros negros e indígenas ocupam mapas do Brasil. “Quando se pensa na independência, o riacho do Ipiranga se torna esse rio simbólico, esse lugar de água simbólica onde foi proclamada a independência, uma analogia do que de fato foi”, observa. “Penso  quantos rios, córregos e águas não eram lugar de resistência neste período, mas que foram apagados dessa história? Nossa independência, por mais que tenha sido proclamada por um rei, uma elite branca, foi também uma independência em que existiu muita luta e muita resistência. Por isso falo desses afluentes, e dou nome pras obras dos rios que alimentavam aldeias e quilombos, trazendo à tona de como a importância dessa resistência também foi primordial da independência do Brasil. Não só daquela época. A construção de uma independência que está em processo de ser, pois o país não é um lugar justo para todos”.

As obras desta série que estarão expostas se chamam “Rio Juruena”, “Riacho Açucena”, “Rio Araguaia”, e “Rio Bacaxá”.

 

“SEMENTE DO FUTURO” (2021/2022)

No canto da galeria, Hal Wildson vai plantar uma muda de urucum, e na parede estará escrito um verso seu, que acompanha muitos de seus trabalhos: “É na memória que plantamos a semente do futuro”. Esta obra “olha” para todas as demais expostas, criando uma conexão com todas elas. “É importante olhar pra essa raiz ancestral para entender que a construção de um futuro depende disso. De como o esquecimento é uma violência. Lembrar-se das coisas é a única forma de plantar o futuro”, afirma o artista.

“É por isso que planto um pé de urucum, pra trazer à tona a importância de olhar para o nosso passado ancestral e entender que a luta continua, que a história está sendo feita ainda. Se eu falo de utopia, não tem como não falar dos povos originários da terra porque são eles que garantem o futuro da terra. De como é importante falar sobre a demarcação das terras indígenas no Brasil, porque sem as terras indígenas, sem os povos indígenas, não existe futuro, não existe mais Brasil”. 

“UTOPIA ORIGINAL” (MÁQUINA DE ESCREVER), 2021

Maior trabalho já feito pelo artista, “Utopia Original” (2021) tem 180 x 336 cm, e a imagem da multidão em uma manifestação acenando bandeiras foi feita com datilografia à máquina de escrever sobre 384 folhas de fotocópias de páginas do livro “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”, de Darcy Ribeiro.  Hal Wildson criou a imagem a partir de várias fotografias de manifestações no Brasil, e ressalta que também está presente nesta obra o “pensamento da identidade e da ninguentude”.

Ele afirma que “o esquecimento é a pior das violências porque te tira o passado e te tira também o futuro”. “A Anistia no Brasil vem com uma violência, ela obriga a gente a esquecer o passado. A máquina de escrever entra como esse objeto simbólico, para falar desse passado recente do Brasil, a ditadura, especialmente, mas também por ter sido, por décadas um instrumento para criar documentos e criar identidades do povo brasileiro. O processo desse objeto feito para escrever se adequa perfeitamente ao meu trabalho, porque consegue resumir essa questão da identidade, da história, e da reescrita. Meu trabalho também fala sobre como olhar para o passado, e reescrever a possibilidade de um futuro”.  

O laborioso processo de construção das obras dessa série, idealizada em 2018, e realizada pela primeira vez em 2019, tem sua “inteligência técnica” vinda do bordado ponto cruz, que o artista aprendeu a fazer com sua avó. “Quadradinhos que você vai juntando e criando imagens, quase que pixels”. “Para criar as obras com a máquina de escrever eu faço isso ao extremo. Primeiro faço um tipo de molde, onde eu sei onde vai ser o vermelho e o preto. Tudo letras. Faço um esboço em um papel e vou marcando onde vai ser cada área de cor. Como faço várias camadas, uma vai apagando a outra, que é uma metáfora do fato histórico, que um vai se sobrepondo a outro, vai criando uma nova realidade. Você apaga uma coisa e cria uma memória em cima do apagamento, do esquecimento, que tem muito a ver com essa linguagem poética do meu trabalho”. “Para ficar o vermelho intenso ou o preto intenso, vou fazendo mais de oito camadas de letra no mesmo lugar, até conseguir preencher. Por exemplo, em uma camada eu repito memória, palavra e esquecimento. Em outra eu coloco letras aleatórias para preencher os espaços vazios, e vou repetindo até conseguir de fato criar a cor, a luz, cor, o contorno”.

Ele utiliza ainda um carimbo criado com a tipografia da máquina, para “aprofundar determinadas palavras, e acelerar o processo de criação”. 

SOBRE HAL WILDSON

Artista multimídia e poeta mestiço, nascido em 1991 no  Vale do Araguaia , região de fronteira entre Goiás e Mato Grosso,  Hal Wildson é conhecido pela pesquisa que envolve conceitos de escrita, identidade e a reconstrução de memórias coletivas e autobiográficas, atravessadas por questões sociais e políticas. A pesquisa sobre memória e esquecimento é a base de um trabalho que investiga a criação de territórios narrativos por meio de símbolos e documentos usados como ferramentas de construção e reconstrução no campo pessoal e coletivo.

“Sou instigado por coleções documentais, técnicas escritas e materiais de documentação, pois acredito que os documentos são objetos que permitem a criação de narrativas simbólicas da memória, na esfera pessoal, criando ficções sobre a própria existência e em larga escala na fabricação da história de uma nação, uma vez que cada memória carrega consigo o peso do esquecimento – o que estamos esquecendo de contar?”

SOBRE DIVINO SOBRAL

Divino Sobral nasceu em Goiânia, em 1966, onde vive e trabalha como artista e curador independente. Recebeu as premiações de curadoria do Salão Anapolino de Artes (2017) e Prêmio Marcantonio Vilaça CNI SESI SENAI (2015); prêmio de Crítica de Arte do Situações Brasília Prêmio de Artes Visuais do DF (2014); Prêmio Marcantonio Vilaça MinC-Funarte (2009). Entre 2011 e 2013 foi diretor do Museu de Arte Contemporânea de Goiás. Publica regularmente textos sobre arte brasileira em revistas acadêmicas, livros, catálogos e jornais.