As mudanças climáticas são o resultado de um cálculo mortífero. Estamos falando da razão entre o quanto de vidas humanas vale a pena arriscar e até mesmo perder sobre os lucros obtidos pelas grandes multinacionais.

Por Sonali Kolhatkar

A Organização Meteorológica Mundial (OMM) recentemente deixou escapar um anúncio bombástico que poderia ter sido manchete de primeira página nos principais meios de comunicação global, inclusive nos Estados Unidos, mas não o fez. Nova pesquisa da OMM conclui que “há uma chance de 50/50 de a temperatura média global anual atingir, ainda que por alguns instantes, 1,5ºC acima do nível pré‑industrial, por pelo menos um dos próximos cinco anos”.

O Professor Petteri Taalas, secretário-geral da OMM, explicou: “O número de 1,5ºC não é uma estatística aleatória. Antes de tudo, ele é um indicador do ponto em que os impactos climáticos se tornarão cada vez mais prejudiciais para as pessoas e, de fato, para todo o planeta”.

Em 2015, a probabilidade de atingir esse limite num prazo de cinco anos era quase zero. Em 2017 era 10% e hoje é de 50%. Se continuarmos lançando gases de efeito estufa na atmosfera em quantidades vertiginosas, essa porcentagem aumentará a cada ano e não tardará a alcançar a marca de 100% de certeza.

Quando a temperatura média global atingir o ponto de inflexão de 1,5ºC, os cientistas do clima preveem que a grande parte dos recifes de coral morrerá. Se atingirmos 2ºC, todos os recifes morrerão. Essa é a razão pela qual os Estados-membros das Nações Unidas se uniram com o objetivo de evitar um aumento médio da temperatura global de 1,5ºC na última reunião global sobre o clima, em 2021.

O planeta já atingiu a marca de aquecimento de 1,1ºC, e as consequências são terríveis em todo o mundo.

A Índia vivencia a sua pior onda de calor em 122 anos, e o vizinho Paquistão quebrou um recorde de 61 anos por conta das altas temperaturas. Dezenas de pessoas já morreram em consequência do calor extremo.

Na França, os agricultores “veem o solo rachando todos os dias”, pois uma seca, que já bateu recordes em sequência, colocou o setor agrícola do país no “modo crise”.

Aqui nos Estados Unidos, em toda a região central e nordeste do país, há uma onda de calor tão grande e tão forte, que a população do Texas ao Maine sofreu com temperaturas de três dígitos (acima de 100ºF) em maio deste ano, ou seja, temperaturas acima dos 38ºC.

Até mesmo o próspero enclave de Laguna Niguel no condado de Orange, no sul da Califórnia, está em chamas, e dezenas de casas foram destruídas. Apesar de as elites endinheiradas do país terem muito mais recursos para permanecerem protegidas dos impactos mortais da mudança climática do que o restante da população, pode ocorrer que até mesmo suas casas estejam no caminho da destruição. Isso é um indicador de que não há lugar na Terra seguro, pois o nosso planeta se aquece de forma catastrófica.

Ironicamente, à medida que as ondas de calor extremo mais se aproximam dos índices de aquecimento global, os seres humanos queimarão mais combustíveis fósseis para fazer funcionar seus aparelhos de ar condicionado que precisam para se refrescar e sobreviver, alimentando assim o próprio fenômeno que leva a ondas de calor ainda mais extremas.

Nesse cenário, é chegada a hora de o mundo tomar uma decisão óbvia de tão simples, e desencadear, sem mais delongas, a transição para fontes de energia renováveis. Em abril, o presidente Joe Biden, em sentido oposto, anunciou a venda de novos arrendamentos para empresas de petróleo e gás perfurarem em terras públicas, renegando as promessas climáticas de sua plataforma de campanha.

O presidente Biden aparentemente procedeu dessa forma de modo a aumentar o abastecimento doméstico de combustível e assim forçar uma baixa no preço do gás. Ele também aumentou a porcentagem de royalties que as empresas pagam ao governo federal, de 12,5% para 18,75%. Porém, nenhuma quantia de dólares economizados pelos consumidores ou ganhos em royalties pelo governo federal pode deter as leis da física e proteger o clima.

A repórter Lisa Friedman do New York Times explicou que “A queima de combustíveis fósseis extraídos de terras públicas e em águas federais representa 25% dos gases de efeito estufa gerados pelos Estados Unidos, que é o segundo maior poluidor do planeta, atrás da China”. Eis uma área em que o poder executivo federal tem controle e, no entanto, considerações financeiras têm ditado respostas que não levam em consideração questões existenciais.

Depois que ativistas do clima denunciaram aos gritos essa jogada, Biden finalmente cancelou os contratos de arrendamento para perfuração de óleo e gás para o Alasca e o Golfo do México. O Departamento do Interior mencionou a “falta de interesse da indústria” e “decisões judiciais conflitantes”, em vez de pressões de ativistas, como motivo para esse cancelamento. Independentemente disso, é uma pequena medida de alívio para um planeta que está a caminho de arder em chamas.

Enquanto o presidente Biden (e outros legisladores) afirmam que são impulsionados pelo aumento da inflação e pelo impacto dos preços elevados do gás nos bolsos dos eleitores, o que parece é que o público não quer de fato uma enxurrada de petróleo e gás para ajudar a reduzir os custos.

Uma nova Pesquisa Nacional sobre Energia e Meio Ambiente concluiu que não há mais ceticismo entre o público de que os efeitos das mudanças climáticas sejam reais, uma vez que 76% dos entrevistados – o maior registro desde o início do levantamento – “acreditam que há provas concretas de que as temperaturas no planeta subiram nas últimas quatro décadas”.

A pesquisa também ressalta em suas conclusões que “os estadunidenses continuam a favorecer a redução das emissões de gases de efeito estufa como sua abordagem preferida para evitar os piores impactos das mudanças climáticas”, e que eles “permanecem céticos sobre qualquer ponto de inflexão em relação à mitigação em direção a uma política climática que priorize a adaptação, o uso da geoengenharia ou o armazenamento subterrâneo de carbono”.

Portanto, ao invés de investir na mitigação dos impactos provocados pelas mudanças climáticas ou se adaptar às mudanças – que é o que as economias de mercado favorecem – as pessoas, de forma bastante sensata, querem, em primeiro lugar, impedir o aquecimento do planeta.

Ainda assim, há uma preocupação crescente entre os cientistas do clima que já pode ser tarde demais para uma transição para as energias renováveis. Apesar de as fontes de energia como solar e eólica se tornarem rapidamente mais baratas e mais acessíveis, o consumo geral de energia vem aumentando tão rápido quanto, conforme um estudo recente. Nas palavras de Mark Diesendorf, o autor do estudo, “é simplesmente impossível que a energia renovável ultrapasse essa meta em retração. E não dá para colocar a culpa na energia renovável. A culpa é do crescimento do consumo e do fato de que se deixou para agir tarde demais”.

As considerações das grandes empresas, que têm na obtenção de lucro as suas fundamentações, é que têm ditado com frequência as nossas políticas de uso de energia e as políticas em relação ao clima. Por conta disso, decidimos efetivamente que o número elevado de vidas perdidas – provavelmente pessoas negras e pobres – terão valido a pena diante da grande dependência do uso de combustíveis fósseis para obtenção de energia.

Podemos fazer uma analogia com o que ocorreu durante a pandemia da COVID-19. Por vários meses, os cientistas soaram o alarme em relação à prevenção, endossando as restrições de movimento das pessoas, uso de máscaras e campanhas de vacinação para impedir a propagação do vírus mortal, assim como fizeram os cientistas do clima, por décadas, alertando contra o aquecimento global. Ambas as campanhas, com base científica, enfrentaram batalhas difíceis, cada uma com seus próprios desafios ao recomendar as diretrizes mais racionais para maximizar a segurança pública, apesar dos sacrifícios financeiros (fechamento da maioria das empresas, incluindo restaurantes, sem falar no  cancelamento de grandes eventos esportivos e de entretenimento, no caso da COVID-19; promoção de subsídios de energia solar, mudança para energia eólica e produção de veículos híbridos e elétricos, no caso da crise climática). Enquanto isso, os interesses corporativos e os oportunistas políticos de direita foram bem sucedidos ao empurrar a sua própria agenda pelos corredores do poder, insistindo que o crescimento econômico era a consideração mais importante.

Hoje, mesmo com as taxas de infecção pela COVID-19 nas alturas, com aumento do número de casos em 58% somente nas últimas duas semanas, o que vemos são os decretos sobre o uso de máscara sendo abandonados em todo o país e as restrições relacionadas à COVID-19 abolidas. Isso não se deve ao controle sobre o vírus —o que certamente não é o caso— mas porque já não é mais viável financeiramente para a “América corporativa” deixar de lucrar por causa das vidas perdidas. Portanto, não há dúvida de que os EUA sacrificarão vidas por causa do lucro —como é o caso da crise do clima.

Vale a pena decifrar essa equação, para que saibamos para onde caminha a humanidade.

Na mesma proporção que testemunhamos as mudanças climáticas, temos visto os corpos são enterrados, literalmente. Os níveis da água do Lago Mead em Nevada caíram de forma tão radical, que os restos de pelo menos dois corpos humanos foram descobertos recentemente. Que outras descobertas perturbadoras estão reservadas para nós?

Este artigo foi produzido por Economy for All, um projeto sobre democratização da economia do Independent Media Institute.


Sonali Kolhatkar é a fundadora, âncora e produtora executiva do “Rising Up With Sonali” (Crescendo com Sonali), que é um programa de televisão e rádio transmitido pelas emissoras Free Speech TV e Pacifica. Sonali é uma escritora associada do projeto Economy for All do Independent Media Institute.

Traduzido do inglês por José Luiz Corrêa / Revisado por Graça Pinheiro