Quem nunca derrapou nas questões idiomáticas em razão do corretor ortográfico do celular ou computador? Acredito que todos nós passamos, no mínimo, por pequenos constrangimentos com essa tecnologia. Embora ela exista para facilitar o nosso dia a dia, de vez em quando, ela também falha. E não é nada incomum, também, que em diversas ocasiões, coloquemos a culpa no corretor, quando a tecnologia nada tem a ver com isso.
Atualmente, nossa população lê e escreve pouco. Em média, nós brasileiros lemos apenas cinco livros anualmente, segundo dados da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”. E desses cinco livros, infelizmente, apenas a metade é lida completamente. Os outros quase três livros são aproveitados apenas em parte.
A deficiência de leitura gera a deficiência na escrita e, consequentemente, a dependência exagerada da tecnologia para escrever. Não é mais tão impressionante, contudo ainda é relevante, verificarmos que os jovens hoje encontram dificuldade em ler e escrever de forma manuscrita. O texto cursivo causa dificuldades na compreensão para aqueles que se habituaram apenas a ler as “fontes de computador”.
Nas salas de aula, ocorrem fenômenos interessantes para analisarmos. Durante muitos anos, parte da metodologia aplicada pelos professores para o ensino consistia do ato de copiar. O profissional de educação dirigia-se à lousa, onde “colocava a matéria no quadro”, e os alunos passavam a copiar, transcrevendo aquele conhecimento nos cadernos e, muitas vezes, tatuando de forma indelével aqueles saberes em suas mentes. Porém, isso mudou…
Se antes as dificuldades poderiam se resumir à compreensão de uma má caligrafia do professor e uma eventual cópia mal feita, causando ruído na informação e no processo de aprendizagem, hoje verificamos a inexistência quase que total desse processo, ora substituído pelas fotografias dos quadros tiradas pelos alunos. Isso corrobora a tese de que cada vez menos se lê, menos se escreve e mais se depende da tecnologia.
Lembro-me, na época de escola, quando estava fazendo uma redação e precisava escrever o vocábulo “ressurreição”. Sem poder contar com um dicionário ou um corretor ortográfico digital (até porque sequer existia), precisei apelar para a memória visual da palavra criada graças ao hábito de ler. No verso da folha, escrevi inúmeras possibilidades de grafia: “ressurreissão”, “ressureição”, “resureisão”, entre outras alternativas absurdas. Quando li “ressurreição”, senti como se uma sirene disparasse na minha mente e gritasse: é assim! Ressurreição se escreve assim! E, logicamente, isso só foi possível mediante à exaustiva prática de ler e escrever sem os atalhos da tecnologia.
Antes de avançarmos para séries maiores, quando já teríamos um conhecimento acima do superficial para elaborar nosso próprio pensamento, éramos estimulados a pesquisar assuntos em livros e enciclopédias para, depois, copiá-los e apresentar seu conteúdo como um trabalho escolar. Era, novamente, uma forma de estimular estes importantes hábitos: ler e escrever. Todavia, essa prática perdeu completamente o seu sentido ao substituirmos o ato de transcrever o conteúdo enciclopédico para uma folha de papel almaço – a preferida dos alunos décadas atrás – pelo control+c e control+v da Wikipédia e posterior impressão.
Além disso, cabe o registro: os corretores estão baseados em tecnologia machine learning, que consiste em aprender conforme as instruções dos usuários. Porém, vejamos, se os mesmos pouco aprendem e pouco sabem, como podem “ensinar” seus aparelhos? Dito isso, poderíamos sustentar o discurso de que “a culpa é do corretor”? Afinal, o resultado, sem dúvida, será uma espécie de efeito bola de neve: cíclico e catastrófico. Eis a razão pela qual penso que a chamada inteligência artificial jamais substituirá a inteligência humana. A tecnologia pode ser mais rápida e – em partes – até precisa, contudo não é capacitada a fazer uma análise empática, mais ampla, personalizada e, seguramente, com melhores resultados no longo prazo, descartando o imediatismo proposto pelas máquinas e sistemas, esse tão valorizado pela nossa sociedade.
Para finalizar, tomemos por exemplo o desenho infantil e sua contribuição no desenvolvimento da escrita. A Neurociência, já há alguns anos, progride no estudo da atuação dessa ciência no âmbito escolar e, a cada dia, traz novas descobertas. Para especialistas dessa área, um desenho é um sistema de representação similar ao sistema da linguagem, pois tal como a formação das palavras, os gráficos também precisam de uma construção sistêmica e lógica. E, apesar do desenho estar fundamentado sob dois pilares computacionais, sistema e lógica, desafio o corretor a compreender um “rabisco” de um aluno melhor que um professor compreenderia, contextualizando toda a sua complexa e humana expressividade.
A tecnologia é e deve ser sempre vista como um importante suporte, mas nunca a estrutura, a base e o alicerce para difusão do conhecimento humano. Ela é um meio, não um fim. O estímulo ao conhecimento é e sempre deveria ser humano.