Por Raphael Pinheiro*
“Querido Telegram, saiba que no ano que passou, eu fui um bom menino. Não me lembro de ter compartilhado nenhuma fake news e tampouco participei de grupos com atividades ilícitas. Por isso, gostaria de pedir que garantissem que não vou ter o uso dessa ferramenta tão bacana suspensa em 2022.”
Sei que o Natal já passou há algumas semanas, mas nunca é tarde para tentar fazer um pedido singelo. Muito provavelmente, a minha cartinha também será ignorada, como fora a do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Roberto Barroso. Só que eu vou tentar assim mesmo.
Para aqueles que estão um pouco alheios ao que ocorre com o Telegram, um dos mensageiros eletrônicos mais populares – e controversos – da atualidade, o noticiário dá conta das inúmeras ações que o TSE vem tomando para garantir que as próximas eleições no Brasil não sejam afetadas pelo “fenômeno” das fakes news. O Tribunal estabeleceu alguns protocolos e acordos com diversas empresas de tecnologia, como a Meta, responsável pelo Facebook, Instagram e Whatsapp – principal concorrente do Telegram –, e o Twitter.
Todas as companhias se mostraram interessadas em ouvir as preocupações brasileiras e também se dispuseram a tentar encontrar mecanismos mais eficientes para frear a disseminação de notícias mentirosas em suas plataformas durante o período eleitoral (mesmo que até agora nada de muito significativo tenha acontecido). Todas, com uma única exceção…
O Telegram, aplicativo desenvolvido na Rússia e atualmente com sede nos Emirados Árabes, ignorou todas as correspondências oficiais do Brasil com pedido de um encontro para discussões. Como não há uma representação oficial da companhia no nosso território, um escritório ou um CNPJ, o Poder Judiciário se vê não apenas com os seus olhos vendados – como a Deusa da Justiça – mas também com suas mãos atadas. Do ponto de vista legal, não há como realizar uma intimação aos seus representantes para que respondam ao chamado do Tribunal Superior Eleitoral.
A solução estudada, para muitos um tanto extrema, seria a de solicitar às empresas de telecomunicações brasileiras que bloqueassem todos os acessos ao mensageiro em território nacional durante o período das eleições. Teríamos uma ação preventiva, no melhor estilo Minority Report, filme de 2002 protagonizado por Tom Cruise, em que as autoridades de um futuro fictício se antecipavam aos crimes, prendendo os infratores antes mesmo de eles cogitarem a realização do ato ilícito.
E é claro que isso desagrada tanto os usuários que fazem bom uso da ferramenta quanto aqueles que não o fazem. Por isso, comunidades inteiras já se mobilizam para ensinar truques de como burlar as limitações eventualmente impostas. A principal dica é o uso de VPNs (Virtual Private Network), que são, numa explicação simplória, intermediadores de sua conexão, que podem enganar os servidores de telecomunicações, transpassando os bloqueios impostos. É como se a sua conexão com o serviço não se originasse no Brasil. Mas será que é isso mesmo que queremos? Transpor um bloqueio judicial?
Muito se especula sobre qual seria o real motivo pelo qual o Telegram ignora os pedidos amigáveis de um encontro, já que não existe uma explicação oficial da empresa. Alguns formulam a tese de que se trata de um fator cultural, já que a Rússia não enxergaria com bons olhos práticas de compartilhamento de informações, uma espécie de “ranço” gerado durante a Guerra Fria. Outros creditam aos governantes russos a orientação de manter uma ferramenta que pode desestabilizar sistemas democráticos de diversos países. Uma terceira via conjectura que a empresa, que nada cobra de seus usuários finais, lucra de alguma forma escusa. A verdade? Talvez nunca saibamos. Por ora, tudo não passa de “teorias da conspiração”.
O que sabemos é que nem só de fake news vive o Telegram. Como aplicativo, ele é uma excelente alternativa ao WhatsApp, que vira e mexe se vê em meio a algum escândalo com relação à privacidade dos seus usuários. A Meta, empresa mantenedora desse programa, tem a sua principal fonte de renda vinculada à exibição de anúncios pagos por outras companhias. E esses anúncios, para terem sucesso, precisam ser muito bem direcionados aos públicos escolhidos. Logo, muito do que você faz no ambiente da Meta é convertido para uso massivo de propaganda.
Por outro lado, o Telegram é tido por especialistas em tecnologia como uma ferramenta que privilegia a sua privacidade. Inclusive, ultrapassando todos os limites que podemos considerar como “resguardo de intimidade”. Outrossim, tanta proteção acaba por atrair tipos de usuários nocivos à rede.
E é então quando os disseminadores de notícias falsas tiram proveito dessa blindagem.
O Telegram permite o uso de robôs (chamados de bots) para, entre outras possibilidades, enviar mensagens em massa sem nenhuma restrição. Já seus grupos podem abrigar até 200 mil usuários, além de ficarem invisíveis em qualquer busca interna ou externa. Um mecanismo perfeito para disseminar, dentre outras coisas, notícias falsas.
Além das fake news, há conteúdos ilegais, como pornografia infantil, venda de armamento pesado e drogas ilícitas. Tudo sem a menor intervenção do Telegram e com o amparo que estimula criminosos a abandonarem as profundezas da deep web para acessarem a ferramenta na superfície da internet, já que se trata de recurso com acesso mais cômodo, sem as dificuldades da rede TOR (The Onion Router, rede anônima que utiliza o protocolo Onion para navegação) e igualmente “seguro”. E as autoridades de inúmeros países, dentre eles o Brasil, não conseguem agir para coibir tais delitos.
No que tange às fake news, contudo, uma das providências que as nossos tribunais poderiam tomar seria fazer uso da própria tecnologia para auxiliar a conter a sua disseminação. O TSE criaria, sem a necessidade de intervenção dos proprietários do Telegram, um robô (bot) que poderia ser consultado pelos usuários do mensageiro para aferir se uma notícia seria falsa ou não. Na primeira vez em que alguém submetesse uma mensagem para o bot, uma equipe humana de checagem verificaria o material e o colocaria numa lista de restrição, se fosse o caso. Assim, quando outra pessoa consultasse o bot com a mesma mensagem, o robô já responderia automaticamente informando se o conteúdo se trata de uma fake news.
Dessa forma, os usuários estariam sendo orientados que aquele material não deveria ser partilhado. Ao invés de ser impeditivo, o processo seria educativo.
Mesmo assim, o Telegram ainda é uma aplicação útil, mas que por negligência de seus desenvolvedores está se deteriorando com conteúdos ilegais. No entanto, é preciso que haja um equilíbrio entre proteger a privacidade de internautas e não criar uma atmosfera profícua para a criminalidade.
Se a minha cartinha não trouxer resultados, talvez eu peça então ao Papai Noel que, no próximo Natal, sejamos brindados com um mensageiro menos tóxico.
* Raphael Pinheiro é pós-graduado em Marketing Digital e profissional com mais de duas décadas de experiência em tecnologia. Atualmente, é editor-chefe do Portal da Academia Brasileira de Letras, uma das maiores e mais importantes instituições culturais do país.