Por Jonathan Power
Belém (IDN) – Talvez seja possível compreender melhor o maior equívoco da história do Ocidente se você ficar de pé na praça da cidade de Belém, permitindo que o olhar passe por cima do telhado da igreja que cobre o estábulo onde Jesus supostamente nasceu, deixando o olho deslizar para além do céu azul e pensar:
Como é possível que os cristãos, cuja crença no centro divino em torno da crucificação de Jesus realizada por soldados romanos a mando dos judeus, poderiam virar para trás, quase dois milênios mais tarde, e dizer realmente para os judeus: aceitamos o argumento de que vocês são o povo escolhido de Deus, que esta terra é sua e nós vamos entregá-la para vocês como seu “lar nacional”, embora os árabes e seus antepassados tenham vivido aqui desde que os romanos expulsaram os judeus da Babilônia, após a demolição do Templo, no ano 70 d.C.
Pois foi exatamente o que fez o secretário britânico dos negócios estrangeiros, Lord Arthur Balfour, na sua famosa declaração. Ele contou com o firme respaldo do primeiro-ministro Lloyd George, um homem religioso que percebia a causa judaica como um assunto que deveria ser amparado pela caridade cristã.
Os britânicos haviam assumido o Mandato da Palestina após a queda e divisão do Império Otomano após o final da Primeira Guerra Mundial. A Declaração Balfour, de 1917, na melhor das hipóteses, foi uma resposta emocional, e, na pior, uma aventura política. A seguinte geração de políticos britânicos e administradores coloniais, confrontada com uma sangrenta revolta árabe que teve de reprimir de maneira implacável, sentiu que os britânicos tinham cometido um erro terrível.
Agora, um equívoco mais recente: como é possível que os judeus de hoje puderam eleger Ariel Sharon como primeiro-ministro em 2001? Quando haviam votado em um candidato que defendia a paz entre árabes e judeus apenas dois anos antes? A manobra de campanha mais bem sucedida de Sharon foi caminhar junto com uma vistosa comitiva pelo pátio do Domo da Rocha, santuário muçulmano de onde uma noite Maomé ascendeu ao céu, e reivindicá-lo como um eterno território judeu, pois o santuário está construído sobre os restos do templo judaico que os romanos destruíram – o Monte do Templo, local mais sagrado do judaísmo e que tem como vestígio o Muro das Lamentações.
Com essa visita, que foi o estopim da segunda Intifada (“insurreição”) e acabou representando uma sabotagem ao governo democraticamente eleito da Palestina (uma grande vantagem para o movimento Hamas), Sharon demonstrou tanto a sua irresponsabilidade como o seu total desprezo pelos 1400 anos de presença muçulmana contínua naquele espaço.
Como se sentiriam os cristãos se Sharon tivesse cruzado a Praça de São Pedro e pronunciado um discurso que desdenhasse as reivindicações dos cristãos pelo Vaticano? Como se sentiriam os judeus se os palestinos tivessem levado faixas e cartazes políticos do Domo da Rocha, no topo da colina, para ostentar no sagrado Muro das Lamentações, lá em baixo?
Será que o corpo político de Israel carece de uma noção de coerência ou de justiça básica? De que serve seguir os preceitos de uma religião e os seus valores se nos deixarmos ser tão facilmente manipulados por um político sem escrúpulos que descuida da vida humana que se interpõe no seu caminho por causa da vaidade e pela fome do poder? E os judeus, que são um pequeno grupo religioso, não são quem mais têm a perder se a tolerância religiosa for prejudicada?
A noção judaica de que somente os judeus podem ter essa terra e mais ninguém é um anacronismo tão extremo sob o ponto de vista de qualquer padrão ocidental ou de qualquer experiência histórica que é incrível que tenha sido levada a sério em 1917. Se cada grupo étnico no mundo declarasse com tanto vigor seus antigos anseios de posse exclusiva de terras, o mundo rapidamente se tornaria um caos, sendo a própria América do Norte o primeiro lugar a sofrer. A China, unida pela invasão mongol, teria de estar hoje sujeita ao domínio da Mongólia.
Outro fato também negligenciado é que a Palestina foi descrita no século XII antes de Cristo como uma área de terra entre onde hoje estão Tel Aviv e Gaza. Isso ocorreu por volta da época em que Moisés guiou os judeus para fora do Egito, em um êxodo pelo deserto em busca da “Terra Prometida” em Canaã. Lutando contra uma série de tribos pelo caminho, Moisés conduziu as tropas judaicas até o atual território de Israel.
Quando enfrentaram seus adversários mais vigorosos, os midianitas, Moisés afirmou, segundo o Livro dos Números da Bíblia, no Antigo Testamento (o quarto livro da Torá), que todos os midianitas deviam ser mortos, incluídas as mulheres e as crianças, exceto as jovens virgens (que deviam se casar com os soldados judeus). Essa passagem do Antigo Testamento raramente é mencionada por judeus, cristãos ou muçulmanos. E raramente é mencionada nos livros de hoje sobre a história judaica, ou ainda na Enciclopédia Britânica.
Por que, então, Israel deveria obter carta branca atualmente? Se os judeus querem acreditar que o Monte do Templo (sobre o qual o Domo da Rocha está construído) é “o ” e que, no centro da colina, encontra-se a “pedra fundamental” do mundo e que aqui “Adão ganhou vida”, então podem acreditar nisso.
Mas é quase impossível assimilar que os mediadores das Nações Unidas, ou mesmo os EUA, a Rússia e os países da Europa, concordem com esse mito à custa dos direitos de ocupação centenários dos tradicionais palestinos. E o pior é que até mesmo os liberais do mundo político ocidental que instam hoje a que Israel se comprometa parecem aceitar que, mesmo se os palestinos recuperassem todos os territórios da Cisjordânia pré-1967, ainda teriam apenas 20% da terra que as Nações Unidas dividiram entre árabes e judeus em 1948, quando o governo britânico se retirou da Palestina.
Há muito tempo que eu apoio os judeus, como sabem aqueles que leram meu último livro sobre crimes de guerra Ending War Crimes, Chasing the War Criminals (Acabar com os crimes de guerra, perseguir os criminosos de guerra – em tradução livre). O Holocausto foi o ato mais horrível da história da humanidade, entretanto, não posso apoiar o judaísmo enquanto seus adeptos se recusarem a enxergar os fatos.
Os judeus devem começar a enfrentar com franqueza seu passado. Eles não têm o direito moral ou religioso de fazer o que fizeram com os palestinos no século passado.
Informação sobre o autor: durante 17 anos, foi colunista de Assuntos Internacionais e comentarista para o International Herald Tribune, atualmente New York Times. Ademais, escreveu dezenas de colunas para os jornais New York Times, Washington Post, Boston Globe e Los Angeles Times. Ele é o europeu que mais apareceu nas sessões de opinião desses jornais. Visite o site do autor: www.jonathanpowerjournalist.com [IDN-InDepthNews – 11 de janeiro de 2022]
Traduzido do inglês por Graça Pinheiro