Muita gente diz que é uma questão de geração. Mas eu discordo. Me refiro à consciência que um(a) artista, um(a) atleta, ou qualquer outra pessoa que se consagra como ícone em uma época pode adquirir e usar para lutar contra as opressões. Aos 91 anos de idade Elza Soares partiu para outro plano deixando uma vida exemplar, como artista-cidadã. Sua voz foi utilizada não apenas para cantar, mas também para denunciar o racismo, a violência de gênero, a fome e a miséria.
Cantar, para Elza, era tudo. Tanto assim que, durante seus 70 anos de carreira, gravou 35 álbuns e, apenas dois dias antes de morrer, gravou um DVD no Teatro Municipal de São Paulo, fazendo valer a letra de “A mulher do fim do mundo”: “[…] Até o fim eu vou cantar, eu quero cantar. Eu quero é cantar, eu vou cantar até o fim […]”.
Elza Soares foi uma mulher que sofreu desde criança, como tantas mulheres negras neste país. Nascida na favela, atravessou muitas dificuldades, inclusive abuso sexual. Mas, após conquistar seu espaço no mundo artístico, não esqueceu de onde veio e, principalmente, usou sua condição para denunciar as opressões.
Nas canções que cantava estão registradas as denúncias contra o racismo, a pobreza, as injustiças, as quais são infringidas a milhões de brasileiras e brasileiros – sobretudo negras e negros que, embora tenham contribuído majoritariamente (e continuem contribuindo) para a construção da riqueza deste país, suportam as maiores injustiças, já que, como diz muito bem a música “A carne”, por ela cantada com maestria, a carne negra é “a mais barata do mercado, que vai de graça pro presídio e para baixo do plástico”.
Ao longo de sua vida/carreira, Elza Soares foi um exemplo de força e de luta para várias gerações. Sempre atenta às mudanças, a cantora buscou se aproximar de artistas mais jovens e ligados/ligadas a estilos musicais mais atuais, como o pessoal do pop rock, do funk, do rap, sobretudo aquelas e aqueles que, como ela, também usam a arte para denunciar as opressões.
Nascida na primeira metade do século passado Elza Soares poderia ter sido mais uma a ter se ajustado ao sistema. Mas não foi assim. Ela não fechou os olhos para o mundo ao seu redor. Ao contrário, os manteve bem abertos e utilizou, junto a eles, a força da sua voz rouca para “gritar” para o Brasil e para o mundo contra todos os tipos de opressão. E em favor do amor.
Diferentemente de algumas pessoas negras que conseguiram se consagrar na música, na arte de interpretar, nos esportes, entre outras áreas, como os jogadores de futebol Pelé e Neymar, por exemplo; ou a jornalista Glória Maria, Elza Soares não minimizava ou negava o racismo.
Pelo contrário, em variadas entrevistas a diversos veículos de mídia, Elza denunciava situações racistas pelas quais passou em sua trajetória. Em uma dessas ocasiões, falando ao site Universa, em novembro de 2019, a cantora ressaltou que “o Brasil é o país mais racista que existe”. Uma pena que, quase centenária, não viveu para ver essa opressão banida do nosso país e do mundo.
Não sei para onde vamos depois que deixamos este mundo que conhecemos, mas, onde quer que Elza Soares esteja, que esteja em paz. Ela cumpriu sua missão de amor, de bem, de luta por um mundo melhor. Deixou um lindo legado que, com certeza, nós cuidaremos para que muitas e muitas outras gerações possam ter acesso.