Por Fatine Oliveira
Lembro quando iniciei minhas primeiras leituras sobre feminismo, senti um certo incômodo com a ideia de mulher debatida nas rodas de conversa. Era uma pessoa que não se parecia comigo, desconhecia minha existência apesar de termos a mesma definição de gênero. “E não sou mulher?”, me perguntava. Mais tarde descobri que em 1851, Sojouner Truth, mulher negra, escrava realizou o mesmo questionamento em uma convenção dos direitos da mulher, em Akron, Ohio (EUA) para uma platéia cheia de homens brancos.
“(…) Eu pari 3 treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? (…)” Sojouner Truth
Antes de Simone de Beauvoir todo o processo social, cultural, político que envolvem o gênero feminino resumir em sua frase “não se nasce mulher, torna-se”, Soujouner já apontava como outros fatores também devem ser considerados quando falamos de “ser mulher”.
Ao começar a falar sobre a ausência de mulheres com deficiência no feminismo, ansiava em chamar atenção para uma realidade que até então não estava inserida na agenda do movimento.
Desde então muita coisa mudou, aliás já estava em processo de transformação. Mulheres com deficiência começaram a falar de si, de suas histórias, pautando novas questões sobre seu corpo e propondo outras reflexões sobre suas experiências com a deficiência. Mulheres sem deficiência se aproximaram, ouviram e construíram pontes. Claro que durante esse processo houveram tensionamentos, incômodos e várias situações de silenciamento. A estrutura não hesitou em nos dizer qual era nosso lugar.
Essa rede de preconceitos, pensamentos conservadores, medo de mudanças impregnam as ações de todos aqueles que nela foram moldados. Por vezes cometemos deslizes seja em uma conversa, ou em uma piada. É constrangedor perceber que não somos tão “desconstruídos” quanto imaginamos, não é?
Da mesma maneira, costumamos cometer o erro de pressupor a existência única daquilo que chamamos de mulher. Quem seria essa pessoa, afinal? Sei que a resposta nos surge quase que automaticamente: ela é branca, cis, heterossexual, não possui deficiência e de classe alta/média. É o que Butler chama de “sujeito do feminismo”. Uma ideia ocidental de um padrão feminino.
Este ideal de mulher nos acompanhou durante todo nosso aprendizado, vimos nos filmes, jornais, novelas e até mesmo em nossas professoras. Aprendemos reconhecê-la após as inúmeras contribuições das feministas negras. Agora acredito que precisamos aprender mais uma coisa com elas: interseccionalidade. Para observarmos as vivências femininas temos falado ultimamente. Será que falamos de todas ou apenas aquelas que conheço?
Ela (interseccionalidade) trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressões de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (O que é interseccionalidade? – Carla Akotirene, p.42)
Nos aventuramos a falar de mulheres, porém não percebemos nossa incapacidade de compreender a infinitude de realidades e pessoas que cabem dentro do que é ser mulher. De que mulher estamos falando? Que mulher é essa que está em seu repertório? Qual é sua cor, sua classe, sua sexualidade, seus sonhos?
Que mulher com deficiência temos falado? É possível generalizar as nossas experiências? A minha vida não é a mesma que a sua, mesmo que você tenha algum tipo de deficiência. Ainda que tenhamos o mesmo diagnóstico, continuaremos sendo diferentes.
Por esta razão, tenho questionado como temos abordado assuntos que são comuns a todas as pessoas. Tomemos, por exemplo, a sexualidade. Falamos sobre direito ao afeto, ao sexo, matrimônio e maternidade a partir de qual perspectiva? Será que não estamos focando apenas nas experiências heterossexuais?
Às vezes, tenho a impressão que pressupomos que toda mulher com deficiência tem o desejo de corresponder aos papéis de gênero feminino, como se esta fosse a única maneira de ser mulher. Acaso toda mulher com deficiência quer casar, namorar e ter filhos? Não será possível ser mulher sem assumir estes lugares?
Como ficam as mulheres trans com deficiência? Lésbicas? Assexuais? São formas de mulheridades que estamos considerando em nossas pautas?
O que proponho aqui é uma reflexão sobre o lugar que buscamos ocupar em nossas lutas. Algo que tenho feito muito ultimamente, sabe? Porque por uma limitação de acesso a diferentes realidades, formas de conhecimento de todos os tipos, acabamos reproduzindo os mesmos argumentos e permanecemos revirando as mesmas questões, sem conseguir avançar em nossa luta.
Se queremos falar de mulher, precisamos encarar o fato de que ser mulher é abordar de uma infinidade de mulheres. São delas, portanto, que devemos falar.