RELATO
Por C. Alfredo Soares
Bem, não se trata de uma aula de culinária.
Apenas um relato de sabores e saberes de uma culinária deliciosa, quando não se tinha quase nada na dispensa pra comer.
Outro dia meu primo me lembrou que quando crianças tomávamos café com fubá. Confesso que havia me esquecido disso e, também, do angu com couve, do pão com melado, da serralha de leão e das folhas de beterraba picadas e refogadas feito couve. Me lembro do feijão cozido com pedaço de ferradura dentro pra nos suprir de ferro, do inhame com mel que estranhei quando minha vó me ofereceu… do café passado no caldo de cana, da farinha feita na “bolandeira” que ficava na roça, do ensopado de chuchu com ovo (chuchu esse que pegávamos na subida da ladeira, nos barrancos dos terrenos ainda vazios).
Era tudo tão gostoso, que jamais passou pela minha cabeça que aquela era uma comida de sobrevivência, fruto da luta diária de uma classe operária assalariada dos anos 60/70 para dar de comer aos filhos. Ter alimentos era o objetivo principal dos chefes de família daquele tempo. Era comum ver homens se entregando ao vício por não conseguir vencer a luta diária de um trabalho, às vezes, indigno e, consequentemente, mal remunerado.
O tão sagrado pão nosso de cada dia custou a honra de muitos homens e mulheres por ser degradante e por submetê-los a funções sem a devida segurança e proteção das leis trabalhistas.
Meus pais não falavam sobre isso conosco. Éramos pequenos demais para tais conversas.
Apenas recentemente soube, que por longo período da sua vida de casada, minha mãe trabalhou de graça em troca de roupas e sobras de comida da casa da patroa, pra ajudar meu pai a nos sustentar. Perguntei a ela por que fez isso e ela respondeu que seus patrões não tinham dinheiro para pagar seu salário, sendo que ela se via na obrigação de fazer algo. Mamãe não guarda mágoa alguma sobre isso. Seu objetivo era maior do que a desculpa esfarrapada que engolia pra não deixar seus filhos passarem fome. Mamãe mostrava assim, ao meu pai, que ele não estava sozinho.
Quantos outros sacrifícios não fizeram sem nos contar!
Muitos foram os que não suportaram e se perderam pelo caminho. A bebida era o ópio mais barato.
Nessa época nem todo mundo tinha geladeira, então, quando tinha carne em casa, geralmente carne de porco, essa ficava acondicionada, pelo meu bisavô, numa lata de banha. Resistia ali por um bom tempo. Quando era feita, seu cheiro despertava o apetite até do vizinho, que sempre aparecia pra beliscar um pedacinho do torresmo quentinho – mas havia solidariedade e respeito.
Todos lutavam na mesma trincheira.
Pelo mesmo motivo de não ter geladeira e nem dinheiro pra comer carne todo dia, aos domingos minha vó fazia galinha do quintal ou da granja, que ela mesma matava e cozinhava maravilhosamente ao molho pardo.
A pior parte, depois de matar o bicho, era depenar a ave após ser escaldada. Ninguém queria tomar a frente da tarefa, os dedos saiam pelados com a água quente que escorria para soltar as penas da ave. A água não podia esfriar.
Quando pronto não sobrava nem uma asinha no prato.
Minha mãe também gostava de fazer frango ensopado aos domingos. Eu gostava dele com macarrão, acompanhado de uma farofa de cenoura.
Pra variar um pouco, entre um domingo e outro, tinha frango assado no tabuleiro. Mamãe colocava na mesa ainda com a gordura fervendo e só servia depois que o meu pai sentasse a mesa garantindo, pra ele, as coxas do galináceo.
No domingo a gente podia repetir e tomar refrigerante em garrafa. Com o passar do tempo as coisas foram melhorando, ainda que num ritmo que não demonstrava que estávamos longe da fragilidade alimentar.
Se por um lado avançamos, por outro, certos hábitos nos retiveram no tempo permitindo guardar paladares que trago até hoje.
Sabe aquele prato que te transporta mais pelo que representa do que pelo sabor?
Então, adoro comer frango ensopado com macarrão. Consigo saborear como num daqueles almoços dominicais da minha infância, temperado do amor que, não só nos enchia a barriga, mas nos trouxe até aqui, sem deixar que esqueçamos o quanto isso custou a quem nos antecedeu.
Tinha o mocotó com legumes, frango com quiabo e pirão, a broa com café, a sopa com sobra do almoço…
Só em falar me dá água na boca , ronco no estômago e aperto no coração.
Nada como a mesa posta e todos lá reunidos falando alto, a espera da comida no prato, que nos calava, até devorarmos tudo.
Essa era a senha da sobrevivência: comer tudo sem desperdiçar nada.