CRÔNICA
Por Marco Dacosta
Acordo às sete da manhã com o ruído de “Arthur”, meu aspirador robô. A tarefa dele é limpar meu apartamento, próximo a terceira avenida, no Bronx. Devido às obras na região, que passa por uma profunda revitalização, e ao enorme trânsito de carros e pessoas, o ar é repleto de pequenas partículas que se acumulam sob móveis e superfícies. Assim “Arthur” garante que eu use meu precioso tempo para escrever, regar plantas – mentira, não faço isso – e para me dedicar a ideias que brotam, viralizam e às vezes morrem em minha tela do computador. Ele não esteve presente durante toda a pandemia, quando eu fiquei trancado, sozinho, com a poeira e a visão turva da janela, olhando pessoas aflitas caminhando em busca de algo, fugindo do vírus.
Depois que acordo com os sons de aspiração de Arthur, verifico a temperatura externa e interna com meu Google Home. Ele me ajudou a dormir com sons de chuva nesse outono seco, às vezes, com ruídos de floresta, mesmo em meio a uma selva de pedra. Se perguntando, me diz as horas, temperatura, notícias do dia e até previsão do horóscopo – que nunca ousei tentar. Mesmo não perguntado, o programei para me alertar nos dias de trabalho remoto – dez e meia, levantar para beber água, almoço e vitaminas ao meio dia, quatro da tarde, meditar ou dar uma volta em torno da cama. Ele não me deixa parado ou entediado. Também posso aprender uma nova língua – recentemente cismei de aprender japonês – e também me ajuda na pronúncia correta do inglês ou alemão, quando os sons parecem não corresponder às letras.
Depois de Arthur e GH ( Google Home para os íntimos) é hora de lidar com meu relógio inteligente. Saio a caminhar e ele conta meus passos e meu ritmo cardíaco. Na piscina, braçadas e até profundidade. Depois volto a casa e o micro-ondas inteligente é acionado pelo GH ou Alexa, que estão conectados também à minha Smart TV. Como não tenho TV a cabo, uso Streaming para tudo – até para brincar com as imagens dos meus dois celulares na telona. Cansado de navegar por dezenas de aplicativos de filmes e também de canais, programo a TV para desligar a meia noite, horário limite que me permito dormir, já que acordo às sete.
Quando vou ao escritório (físico) vou de metrô, que também é operado por instrumentos e chegando me conecto a uma rede – não a computador físico. Só tenho uma tela e um teclado – o resto está na “nuvem” mesmo que jamais tenha a visto passar. O céu é uma abstração nesses tempos automáticos.
Lembrei do filósofo e professor sul-coreano Byung-Chul, autor de “Sociedade do cansaço”, que descreve como a solidariedade desaparece na sociedade em que indivíduos cada vez mais sentem-se autónomos e despendidos do outro. Embora dependentes como nunca – a acelerada automatização nos dá um sentimento de que não precisamos mais de ninguém em nossas vidas, somente robôs e tarefas automáticas.
Não sei se quero trocar minha rotina automatizada e todos os assistentes virtuais, mas é bom saber o que perco com tudo isso. Talvez seja apenas para me manter consciente de onde eu vim. Quando eu era pequeno meu pai montava rádios e televisores com válvulas para vender, era um mundo em preto e branco e lento. Saber o que perdemos não é um recurso para voltarmos a viver como no passado – é apenas um freio na arrogância.
A jornalista Pamela Paul, do ‘The New York Times’, publicou recentemente um livro com uma centena de sensações, objetos e momentos que desapareceram com a tecnologia. São registros importantes para minha geração. Nenhum grupo humano sofreu tamanha mudança e avanço quanto os nascidos nos anos 60 ou 70. Somos privilegiados e ao mesmo tempo marcados por essa forte transição entre os Flintstones, que viviam com TV nas cavernas e os Jetsons, que voavam com seus carros.
Se pudesse enviar uma mensagem ao meu pai – que nos deixou em 1991 sem ter visto quase nada desse avanço – teria usado Arthur, meu robô aspirador para sintetizar nossa preguiça e acomodação. Assim como nos desenhos animados futuristas, nos convertemos em padrões de máquinas que fazem quase todo trabalho manual enquanto ficamos livres para amar e sonhar. Ou ao menos deveria ser assim. Me recuso a imaginar um mundo em que as máquinas se enfrentam em batalhas de destruição – como também criamos na literatura e cinema.
Arthur volta religiosamente ao seu carregador após uma hora circulando e recolhendo toda poeira e pedaços de pão que caíram enquanto eu assistia à TV. Eu paro de pensar nessas coisas, afinal estou totalmente integrado ao século 21. Definitivamente não quero mais ter que calar o despertador um um tapa, colocar uma velha chaleira para esquentar água e correr para a escola, enfrentando chuva e trem lotado. O futuro me presenteou com vitaminas e vacinas, alongou minha vida, me fez envelhecer sem tantas cicatrizes.
Esse texto, nem foi digitado. Meu assistente virtual teclou enquanto eu estava deitado olhando para o teto, assistindo estrelas projetadas pelo celular. Que admirável mundo novo.