CRÔNICA
Por C. Alfredo Soares
– [ ] Lembro- me que, quando eu era criança, meu bisavô usava sandálias feitas de pneu de carros. Seu Nelo, um vizinho que trabalhava com arreios de cavalo, fabricava as sandálias sob encomenda. Vô João Mundica – o nome derivava da sua mãe que se chamava Raimunda – pedia pra fazer um par de lambretas de borracha. As vezes era preciso levar o pneu velho para que ele tivesse como fabricá-las. Não cheguei a usar uma, era muito criança, mas acompanhava Vô João e vô Zé até a oficina onde tais sandálias eram feitas. Antes delas usavam tamancos de madeira com tiras de couro. Normalmente na lida diária. Aquilo machucava entre os dedos do pé até sangrar. Eu, moleque, gostava de ver aqueles homens, já de cabeças brancas, conversando sobre a vida enquanto esperavam suas sandálias. Falavam de coisas banais. Discutiam também. Implicavam um com o outro. As palavras eram truncadas e reduzidas em meio às seguidas risadas. Nunca presenciei um tema político, por exemplo. Eram homens simples dedicados ao trabalho. Seu Nelo, sentado num banco, costurava na sua máquina Singer preta. Além de sandálias era famoso com seus arreios e chicotes feitos com tiras de couro curtido. O ambiente tinha cheiro de cola de sapateiro. Entre uma costura e outra, ele ainda rezava com folhas quem aparecesse precisando… rezava torcicolo e torção. Não cobrava por isso. Cerzia uma linha num talo fino de plumagem e a gente saia curado. Era assim mesmo.
– [ ] Vô João, que não era de reza, gostava das sandálias para ir no mato buscar lenha para acender o fogão no final da tarde e fazer seu próprio café. Pegava seu facão e foice e ia, as vezes voltava com uma gambá pendurada no cabo da foice, garantido, pra ele, tão somente, a carne preferida. Também fazia roçados pra quem precisasse e pagasse. Cobrava uns tostões pelo serviço. Quando resfriávamos era a” dele a missão de buscar no mato a planta certa pra vovó Vita fazer o xarope. Sabia o nome de todas as ervas e para que serviam.
– [ ] Em frente a casa, onde ele morava, tinha um pequeno curral com uma porca na engorda e um pé de café. Dali ele colhia o fruto, secava, torrava e coava – A porca ele cuidava para sacrificar no final do ano – O café era o mais forte da vizinhança. Servia numa caneca de ágata ruída, após convocar a família aos gritos de “o gole está pronto!”
– [ ] Vô Zé trabalhava quebrando pedra numa empresa chamada Pedratex. Era um homem carinhoso, disso me lembro bem. Tinha mãos grossas e grandes, calejada pelo trabalho pesado. Seu afago arranhava a gente. Adorava Marcinha, minha irmã caçula. Estava sempre a disposição de minha vó Vitalina, a verdadeira chefe de todos.
– [ ] Na medida que fomos crescendo eles foram partindo. Vô Zé partiu primeiro. A lida forçou demais seu nobre coração.
– [ ] Vô João dizia que tinha mais de 100 anos, mas ele mesmo não sabia sua idade. Não fora registrado ao nascer, quando morreu não achamos seus documentos. Dizia-se que morreu de velho. Só existia o registro de batismo feito pela igreja. Somente depois deles adultos veio o cartório e a obrigação de registro dos filhos.
– [ ] Vovô não era cristão, nem era outra coisa. Vivia do que era permitido a um homem negro retinto a menos de 100 anos da abolição. Seus luxos eram um cachimbo velho com um bom fumo de rolo. No pé calejado uma lambreta de pneu, na cabeça um chapéu de feltro furado. Não ansiava mais nada, por isso zombava da nossa cara quando tentávamos contar as novidades. Tinha visto de um tudo. Seu senso de humor único era seu escudo pra tamanhas mazelas. Não nos contava nada de concreto sobre seu passado, talvez não valesse a pena contar. Mas gargalhava das coisas do presente, pois tinha plena noção do tempo. Vô Zé e Vô João mundica existiram e resistiram aqueles tempos difíceis.
– [ ] Bem, as lambretas de pneu, de tão resistentes, duravam mais do que o proprietário. Com o passar do tempo passamos a calçar sandálias que víamos no comercial de tv. Elas não dão cheiro e nem deformam, mas também não deixam marcas.