CRÔNICA
Por Marco Dacosta
O Monte Rainier, segundo os geólogos, é um estratovulcão – em formato de cone – e por isso muito sujeito a uma erupção catastrófica. Ao contrário do medo, a imponente montanha de quatro mil metros, que se avista de Seattle, acumula neve eterna e afeto de todos que vivem à sua volta.
A longa e tortuosa estrada que leva até um ponto chamado “paraíso”, cercada de árvores gigantescas, de verde eterno. Ao longo da rota que leva ao topo das montanhas, trilhas sinalizadas, riachos de pedra. São oito rios que nascem das águas geladas que descem em direção ao pacífico, outras nascentes formam lagoas cristalinas. Há no ar um frescor com cheiro de diversas plantas e na primavera, campos de flores silvestres que contornam as montanhas.
Rainier é um dos pontos altos da Cascade Range, uma cordilheira que vai da Califórnia ao Canadá, se aproximando do mar em alguns pontos. A cordilheira faz parte do “Anel de Fogo” do Pacífico, o circuito de vulcões. Os picos cobertos pela neve são visíveis nos dias claros, de qualquer navio que se aproxime do porto de Seattle.
No começo do século passado, milhares de viajantes avistaram o Rainier como se fosse uma continuação do Monte Fuji – semelhança é sinal de que os deuses não os haviam abandonado. Os barcos flutuam lentamente pela baía até chegarem a terra firme, onde espera-se trabalho e prosperidade. Também vieram em busca de trabalho e uma nova vida os que tinham o Vesúvio italiano como sagrado, Monte Kilauea na Oceania, Fagradalsfjall na Islândia entre tantos outros. Cada povo tem sua montanha divina, sua escada para o céu.
Como nasci em terras cercadas de montanhas, me sinto bem ao ver o horizonte que toca as nuvens. Olho para cada detalhe, tentando fotografar com a mente o que não conseguiria registrar com a câmera. É uma beleza tão intensa que não é possível registrar com nenhum equipamento senão a alma humana.
Meus olhos navegam em busca das cabeças dos alces, do movimento rápido dos esquilos. Não vi o urso negro, mas há sinais que eles andam por ali. Alertas nas placas nos mantém atentos porque são os mais violentos de sua espécie. Como estou no seu território, cabe a mim o gesto de respeito e silêncio. A montanha pertence a todos esses animais e a exuberante natureza. Sou um intruso na grande cadeia montanhosa do pacífico. Há um arco de fogo abaixo na terra, o céu azul e gelado que corta as terras abaixo de meu corpo.
Caminhar pelo “paraíso” requer delicadeza e carinho aos que vieram antes de mim. O lugar é uma terra sagrada. Rainier – é sobrenome de conquistador europeu, mas os povos do litoral se referem apenas como “a montanha” e outros insistem em chamá-la pelo mais antigo dos nomes: “Tahoma”, que para os o povo Nisqually significava “A montanha que era Deus”.
Não poderia haver nada mais sagrado nas tribos que habitavam aquelas terras do que a grande montanha que cuspia fogo. A camada de neve eterna pode causar choque com o rio de lava quente que há milhares de anos insiste em escorrer ao seu redor. A terra negra e vulcânica misturada aos depósitos de resíduos da natureza forma um ambiente perfeito para centenas de plantas e flores silvestres. Os campos que descem das montanhas parecem saídos de uma animação encantada. Não é por acaso que chamam de paraíso o platô de onde iniciam as trilhas que levam a entrada adormecida do vulcão. Na última vez que o “Deus” acordou foi em 1854, as cinzas taparam o sol, transformando o dia em noite.
Chegar ao topo do Monte Rainier é uma tarefa difícil, envolvendo a travessia de uma grande geleira. A maioria dos alpinistas leva de dois a três dias para chegar ao cume. O primeiro a chegar lá em 1888, John Muir, é hoje considerado o “pai” dos parques nacionais norte-americanos. É também um lugar extremamente perigoso para exploradores e há uma lista imensa de incidentes associados à exposição a altitudes muito elevadas, fadiga, desidratação e ou mau tempo. Cerca de 58 mortes foram relatadas nas últimas quatro décadas, quando se iniciaram os registros. O cálculo de estudiosos é que a montanha é um polo de atração de alpinistas e desbravadores há séculos e centenas não conseguiram voltar de suas expedições.
Cheguei ao máximo que a estrada me permitiu. Olhei para o cume e parecia tão perto que até doía os olhos de tanta claridade. A luz do sol refletindo nas geleiras e o contraste com o azul do céu são as combinações de cores mais lindas que já vi. Dizem que a combinação dos campos de flores silvestres com o verde eterno e as geleiras no topo formam uma das mais lindas paisagens do planeta, muitas vezes reproduzidos em fotos de calendários e até filmes, antes dos filtros de fotografia, a beleza da terra sem retoques comerciais. Há uma mistura de veneração, respeito e medo com esses vulcões em atividade. É uma simulação da nossa própria vida, sujeita a erupções e terremotos que não podem ser calculados ou evitados. Assim como nós, imprevisíveis, agressivos, destruidores.
Os povos antigos o chamavam de Deus porque de lá vinha a bênção e o castigo, a beleza e a também a punição que tirava a vida.
Um vulcão ativo é nossa melhor tradução. É a síntese da nossa brevidade e longevidade, mistério e devastação.