Olivier Flumian entrevista Vincent Hugeux
Por várias décadas, o nome da Líbia esteve intimamente ligado ao de seu líder, Muammar Kadafi. Utilizando seus imensos recursos petrolíferos, o líder líbio multiplicou intervenções complexas no cenário internacional: a tentativa de união com alguns de seus vizinhos árabes, o apoio a vários movimentos terroristas em todos os continentes, o financiamento de inúmeros projetos na África etc. Suas relações com o Ocidente foram ambíguas, muitas vezes tensas, já que o país enfrentou sanções internacionais durante dez anos até ser perdoado.
No entanto, o regime líbio entrou em colapso durante o ano de 2011, depois que Kadafi houvesse governado o país durante 42 anos.
Para entender melhor essa tumultuada história, Pressenza entrevista Vincent Hugeux, jornalista independente, repórter sênior do serviço internacional da revista L’Express de 1990 a 2020, especialista em África e autor de uma biografia do líder líbio, cuja versão de bolso foi publicada em março passado pela Tempus / Perrin.
Ver também:
A Líbia de Kadafi: do apogeu à queda, de 1969-2011 – Parte I
A Líbia de Kadafi: do apogeu à queda, de 1969 – 2011 – Parte III
A Líbia foi — e continua sendo — um grande produtor de petróleo, com 58% do seu PIB proveniente dessa exploração. O que o regime de Kadafi fez com essa dádiva do petróleo?
Por incrível que pareça, o “Guia” da Líbia percebeu, desde muito cedo, os efeitos perversos dessa riqueza. Claro, ele sabia muito bem aquilo que devia ao ouro negro: reservas monetárias colossais e um instrumento de influência incomparável, especialmente no início deste milênio, útil na hora de libertar seu país de sua condição de pária mundial. Entretanto, o Beduíno também tinha compreendido que a posse de tal tesouro tendia a inspirar as pessoas a viver de rendas, algo que ele criticava em seus discursos com verve devastadora. “De que adianta trabalhar, já que o dinheiro está fluindo livremente? Para que trabalhar, quando grupos de imigrantes da África ou da Ásia se aglomeram para realizar as tarefas mais ingratas?”. O fato é que o dinheiro do petróleo lhe deu uma margem de manobra invejável, tanto para dotar a Líbia (de estradas, aeroportos, sem mencionar a construção faraônica do Grande Rio Artificial — uma rede de canais que deveria abastecer as cidades costeiras e irrigar vastas áreas), quanto para comprar a lealdade de dignitários tribais influentes, para mimar um exército superdimensionado e ultraequipado, ou para estender seu domínio por meio do financiamento, especialmente no continente africano. O dinheiro do ouro negro ainda permitiu a construção de mesquitas, de hospitais e de universidades, além de encher os cofres de um mosaico de “movimentos de libertação” anti-imperialistas com dinheiro e armamentos.
A sociedade líbia se transformou, tornou-se mais rica e urbanizada, e sua população aumentou de 2 milhões para 6,5 milhões de habitantes em quarenta anos. Que repercussões isso teve nas condições materiais de vida e nas relações sociais dos líbios … e das líbias?
Repercussões bastante antagônicas, para dizer o mínimo. Na Líbia, mais de 90 % da população reside ao longo da costa mediterrânea. Nessa faixa costeira, a modernização das instalações foi desigual, mas espetacular. Tanto em Trípoli como em Sirte surgiram centros de conferências de estilos faraônicos, típicos das desproporcionais ambições continentais de Kadafi. No interior, e particularmente nas regiões mais desertas de Fezzan (ao sul), a situação é muito mais desfavorável. No papel, a Jamahiriya — ou o Estado das massas —, pouco povoada, tinha muito a oferecer a seus cidadãos em termos de bem-estar. Porém, na prática, não foi este o caso. Cada vez que me mudava do centro de uma cidade para explorar um determinado bairro da periferia ou um mais afastado, encontrava líbios muito pobres que, sob o manto do anonimato, faziam duras críticas às autoridades. E eram rápidos em denunciar, não sem motivos, os delitos de corrupção, do clientelismo e da burocracia. Quanto ao destino das mulheres líbias, o histórico do Guia é mais uma vez ambíguo. Ele minou, implacavelmente, o patriarcado e, sem dúvida, afrouxou a camisa de força social da tradição em benefício das “irmãs”. No entanto, o seu Livro Verde atribui sobretudo à mulher a missão de esposa e de mãe. E Kadafi, um predador sexual impiedoso, continuou a subjugar e a rebaixar aquelas que afirmou ter libertado.
– Kadafi permaneceu no poder por 42 anos. Como explicar a longevidade de seu regime?
A ferocidade implacável de seu aparelho repressivo não é suficiente para explicá-la. Nos primeiros anos de seu “reinado”, o jovem oficial gozou de inegável popularidade. Ele aparece como um idealista completo e austero, atento ao destino dos desprivilegiados. E encarna uma ruptura radical com aquela monarquia desgastada, percebida como distante, arrogante, sujeita aos ditames de um odiado Ocidente. Dito isso, este estado de graça dificilmente duraria, obscurecido por brigas internas no CCR — Conselho do Comando Revolucionário, o núcleo executivo de seu regime —, e por tramas reais ou imaginárias. Como qualquer autocrata, Kadafi batia o pé diante das adversidades e fazia o papel de diva, fingindo abandonar um povo que, decididamente, não merecia seu deslumbramento extravagante… Consequentemente, é à eficácia de seu sistema de segurança e às divisões de uma oposição sufocada e fragmentada que sua excepcional resiliência deve ser atribuída. Nunca fui da opinião de reduzir a personagem a um doido varrido. Como um louco poderia ter resistido por mais de quatro décadas no timão da Líbia? Isso exigia uma espécie de gênio político, por mais cruel que fosse. Um exemplo: esta ciência inata da alquimia tribal, sem a qual um líder de um clã minoritário nunca poderia ter estabelecido seu poder. Mais tarde, o “Guia” soube como jogar habilmente com as aspirações energéticas do Ocidente e, depois, com o perigo jihadista para poder se livrar de seu status como líder indesejável, ou de providência para terroristas, e também para negociar seu — efêmero — retorno glorioso.
– Ele tentou várias vezes unir seu país com seus vizinhos árabes. Quais eram suas relações com o mundo árabe?
Essa união delirante reflete o voluntarismo pan-árabe, mencionado anteriormente, do homem que queria ser o discípulo mais zeloso do nasserismo. Aos seus olhos, o destino das Ummah — a comunidade de todos os muçulmanos — não podia encontrar-se moldado por fronteiras herdadas, em grande parte, da época colonial, cujo traçado artificial fora um arranjo entre as potências ocidentais. Entre 1969 e 1989, o Coronel celebrou, assim, uma dezena de “casamentos”. A maioria seria efêmera, natimorta ou mesmo puramente fictícia. E tudo terminaria em fracassos, se não em divórcios motivados por diferenças irreconciliáveis. Podemos citar, entre as “noivas”, o Egito, a Síria, o Chade, o Sudão, a Argélia e a Tunísia de Habib Bourguiba. Esses casamentos, celebrados em 1974, durarão apenas 48 horas. O tempo necessário para o “Leão de Cartago” desenterrar a disposição constitucional adequada para bombardear o projeto. Se os poderosos árabes locais não podem condenar diretamente os avanços de um Muammar Kadafi venerado entre seus jovens, a força do Leão preocupa os líderes e até os leva ao desespero, principalmente porque, ao longo dos anos, os líbios assumem a postura de minar publicamente a “indiferença” ou a “covardia” de seus homólogos. Inclusive, estão a favor das cúpulas da Liga Árabe, que às vezes se transformavam em drama, se não em farsa. Essa hostilidade atingiu seu auge em relação a Anwar al-Sadat, o sucessor de Nasser, a ponto de culminar na curtíssima Guerra Líbia-Egito, em julho de 1977. Da mesma forma, tudo indica que o Cairo estava, então, associado ao plano de eliminação física de Kadafi imaginado por Washington, que contava com o apoio tácito de Paris. Sem dúvida, o profundo ressentimento inspirado pelas rejeições de seus “irmãos” árabes explica, em parte, a “virada africana” operada por Trípoli no final do século passado.
– Kadafi se autodenominava “rei dos reis tradicionais da África”. Quais eram suas relações com a África, com seus líderes e com suas populações?
Aqui, novamente, devemos ser cautelosos com as aparências, com a retórica e com os efeitos de palco. Decepcionado com a vaidade da dinâmica pan-árabe, o mestre da Jamahiriya dirige-se resolutamente para o sul, vestindo o boubou – túnica africana — do novo messias do pan-africanismo. Kadafi tem os recursos, e inspira tanto o medo como a gratidão, até mesmo esses dois sentimentos. Sua capacidade de causar problemas e suas reservas cambiais garantem a lealdade, muitas vezes temerosa, dos regimes frágeis. Quantas vezes eu ouvi, nos bastidores de uma cúpula da União Africana (UA) ou nas ante salas de palácios presidenciais subsaarianos, eminentes conselheiros do Príncipe que confiavam em segredo: “O que você quer? Seria suicídio desafiar Kadafi. Ele enche nossos cofres, constrói nossas mesquitas e ameaça armar esta ou aquela rebelião em caso de desobediência”. O fascínio que Kadafi exerce post mortem sobre uma fração significativa da intelectualidade africana, que segue em busca de ícones desde a morte de Nelson Mandela, tem algo de inusitado. Em particular, se pensarmos nas várias tentativas de anexação da franja norte do Chade, que Kadafi sempre considerou parte integrante da Grande Líbia, e que foi objeto de uma grande disputa com a França dos ex-presidentes Valéry Giscard d’Estaing e François Mitterrand. De forma particular, ele poderia tratar seus anfitriões de pele escura com uma condescendência que beirava o desprezo. Na biografia que escrevi, cito o testemunho esclarecedor sobre a questão do gabonês Jean Ping, chefe da Comissão da UA na época em que Kadafi era o presidente em exercício. Além disso, testemunhei, especialmente no período de 1999-2000, algumas chacinas visando os trabalhadores imigrantes subsaarianos conduzidas por comerciantes líbios, à vista e com o conhecimento de forças de segurança que atuaram de maneira passiva, senão cúmplices. É por isso que elevar Kadafi à dignidade de herói pan-africano é, em minha opinião, uma farsa.
– O regime viveu os últimos vinte anos da “Guerra Fria” e, depois, os vinte anos do período “pós-Guerra Fria”. Como evoluiu seu posicionamento nas relações internacionais?
No verão de 1969, quando Kadafi assumiu o controle do país, seu perfil nasserista, anti-imperialista e revolucionário o classificou entre os aliados naturais de Moscou, especialmente porque as fábricas de armamentos da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) lhe forneciam a maior parte de seu equipamento militar. No entanto, existiam algumas nuances. Como vimos, o Coronel repudia o ateísmo de Estado ao estilo soviético e dispensa o capitalismo e o marxismo, doutrinas também obsoletas aos seus olhos. Além disso, além de suas arengas incendiárias, ele poupa as grandes petrolíferas americanas. Finalmente, seu ardor, sua modernidade e sua aparente integridade atraem a Europa. Quando Kadafi foi recebido no Palácio do Eliseu, em 1973, Georges Pompidou concedeu-lhe, em privado, o título de “esperança do mundo árabe”. O endurecimento do regime, a generosidade financeira e militar concedidas à nebulosa que representavam os “movimentos de libertação” de todos os matizes, incluindo os mais exóticos e os mais marginais, o uso do terrorismo como instrumento de influência ou de punição, tudo vai arruinar o pouco crédito que ele ainda poderia aproveitar no Ocidente e o precipitará, de forma duradoura, para o lado errado do futuro “Eixo do Mal”. Os massivos ataques, já citados, ordenados pelo governo Reagan em retaliação ao atentado à boate berlinense La Belle, fatal para dois soldados americanos, aos olhos de Kadafi deixam os Estados Unidos na condição de inimigo absoluto. Mas só até que ele perceba os efeitos devastadores das sanções que estão estrangulando seu país. Para afrouxar o controle, Kadafi aceita — embora negue qualquer responsabilidade pelos atentados — pagar uma indenização substancial aos beneficiários das vítimas de dois ataques de história sinistra: o do avião DC-10 da companhia aérea UTA (Níger, em 1989) e o do Boeing da PanAm (Escócia, em 1988). Dentro dessa mesma linha, ele afirma ter ordenado de maneira antecipada um mandado de prisão internacional contra Osama bin Laden, o fundador da Al-Qaeda, e de ter derrotado os maquis islâmicos, ou membros da resistência, que operam no Oriente. O resto, já sabemos: mais uma vez “tolerado”, Muammar Kadhafi será assiduamente cortejado pelo italiano Silvio Berlusconi, pelo britânico Tony Blair, pelo chanceler alemão Gerhard Schröder e, claro, pelo francês Nicolas Sarkozy. Isso até a reviravolta de 2011.
Traduzido do francês por Aline Arana / Revisado por Graça Pinheiro