Tupinambá da Terra Indígena Tupinambá de Olivença/Ba e também Pataxó Hãhãhãe, da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu do Sul da Bahia, onde mora, Olinda Yawar Wanderley diz que o marco temporal – ação que está no Supremo Tribunal Federal (STF) que defende que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988 – é mais uma tentativa do homem branco de usurpar os Territórios indígenas. De acordo com essa jovem indígena, que, além de jornalista é documentarista e cineasta, por ser um “braço do capitalismo”, o agronegócio precisa ocupar territórios que tenham recursos naturais para explorar e continuar aumentando fortunas. Nesta entrevista a Pressenza, Olinda Yawar ressalta, no entanto, que os Povos Indígenas estão unidos, se articulando e lutando para barrar mais esse ataque às suas existências.
— O que significa ser indígena?
— Ser indígena no Brasil contemporâneo é entender que entramos em guerra desde 1500 quando nosso território foi roubado, que devemos nossa existência a tantos outros que lutaram para manter nossa conexão com nossos ancestrais e sobretudo entender que o capital nunca vai nos deixar viver em paz, pois representamos o empecilho à este “desenvolvimento” que nos impõem em detrimento da nossa casa, que é o planeta e sua biodiversidade
— Qual a importância da posse da terra para vocês?
— A terra para mim representa a nossa conexão entre nós e nossos ancestrais, é onde podemos fazer nossas moradas, mantendo aspectos de nossa cultura que estão ligados diretamente a nossa terra e território.
— Existe diferença entre terra e território? Se sim, poderia nos explicar?
— Território para mim tem a ver com um espaço delimitado onde vive determinado grupo de pessoas, plantas ou animais, ou seja, um espaço de origem que compõe os limites onde vivem. Já a terra tem diferentes significados, dependendo da interpretação de cada povo. Por exemplo, para muitos não indígenas a terra significa apenas um modo de obter lucro através da exploração desse recurso que é o solo, explorando para criação de gado, plantação de soja e milho em grande escala pra gerar lucro. Para os Povos indígenas, a terra ganha um outro significado, que tem a ver com respeito aos nosso ancestrais, em entender que precisamos cuidar dela, pois é ela cuida de nós e nos proporciona a existência. Sem ela não existimos.
— Como é viver o tempo todo tendo que lutar para obter algo que, por direito, pertence a vocês, mas que lhes foi usurpado?
— A luta dos Povos Indígenas é uma das lutas mais injustas do ponto de vista humano, mas a sociedade não consegue perceber isso. Lutamos pelo direito à existência, nos recusamos a morrer, mas isso não impede que muitos de nós tombemos. Mas, quando isso acontece, buscamos força para continuar a luta. Estão de olho nos recursos naturais que existem em nossos territórios, e acho que no presente nossa luta tem se intensificado cada dia mais.
— Que papel desempenha a posse da terra especificamente para a mulher indígena?
— Não tem como separar a importância da terra entre homens e mulheres indígenas. O papel da posse da terra tem o mesmo sentido, é um papel coletivo. Somos parte de uma coletividade, e entre os indígenas esse pertencimento é muito claro. Na sociedade ocidental se valoriza o individualismo, e entre nós, não. O papel da posse da terra para nós indígenas é ter o poder de estar juntos com ela e a proteger como ela nos protege. Existir em conjunto.
— O que significaria para as populações indígenas se esse “marco temporal” passar a vigorar?
— A tese do marco temporal é mais uma tentativa do homem branco de usurpar os Territórios Indígenas. O agronegócio é um braço do capitalismo, e este tem corrido para ocupar territórios que tenham recursos naturais para poder explorar e continuar aumentando suas fortunas. Pensar na possiblidade dessa tese passar, para mim é a validação do Judiciário ou do Legislativo (através do Projeto de Lei 490, que cria o marco temporal), a depender da situação, em poder livremente cometer genocídio contra os povos indígenas, já que muitos perderiam o direito a existir enquanto povo que mantÉm sua existência atrelada a seu território.
— Como você, enquanto mulher indígena, se sente em relação a esse “marco temporal”?
— Muitas vezes sinto que a sociedade dá pouco ou quase nenhum apoio às populações indígenas, que nossa luta poderia ter mais apoio da sociedade civil. Acho que as pessoas, de modo geral, poderiam cobrar mais respeito com os povos dessa terra.
— Como se encontra a luta de vocês no sentido de barrar a aprovação do “marco temporal”?
— Desde de que a tese do marco temporal foi para julgamento, o movimento indígena tem se organizado para traçar estratégias contra. As entidades – tanto estaduais como as nacionais – têm trabalhado em conjunto para fortalecer a luta, pois o problema atinge os povos indígenas de forma geral.
— Há uma articulação em nível nacional ou cada estado se articula separadamente?
— Há articulação em nível nacional, e cada estado também se articula. Temos organizações regionais também, e as bases estão sendo fortemente mobilizadas. A discussão está dentro das aldeias, nos grupos de WhatsApp indígenas. Estamos muito atentos a isso e dispostos a reagir em caso de revés político contra nosso direito à existência.
— O que você diria aos Ministros e Ministras do STF a respeito do “marco temporal”?
— Eu não quero acreditar que o Judiciário fará um julgamento que ponha em jogo nossa democracia, nossos direitos à terra são constitucionais e não existe marco temporal na Constituição. Os legisladores não impuseram nenhum marco temporal, pois reconheceram nosso direito ancestral, e trabalharam no texto constitucional para garantir nossos direitos a terra, pois esse direito é originário, ou seja, existe antes da criação da própria constituição, antes da chegada dos europeus aqui. E para além de tudo isso, o STF não pode agir à revelia do direito à vida, e o marco temporal atinge o nosso direito à vida. Acreditar que o STF possa julgar válido o marco temporal, é crer que o Judiciário está contaminado com uma espécie de Nazismo brasileiro, onde o “espaço vital” do homem branco brasileiro, seu “Lebensraum” é a terra dos povos originários porque o “branco” é “mais desenvolvido” e precisa de mais terra para destruir. Tiveram antes poder bélico e econômico para nos expulsar, então teriam garantido o direito a permanecer, ou nos roubar novamente. E a última coisa que tenho a dizer é que essa atitude de remarcar o julgamento uma vez atrás da outra é um desrespeito aos povos indígenas, uma brincadeira com povos inteiros. Não é de se admitir que isso continue, pois nos custa nos mobilizar, nos custa recurso econômico, financeiro e emocional. Os juízes do STF são homens e mulheres que fazem parte de uma elite econômica aqui no Brasil e precisam ter mais senso do que essa posição representa, já que ocupam posição extremamente importante no poder de Estado. O risco em agir nos desrespeitando dessa forma é parecer que estão tomando cuidado para não desagradar seus pares.