Nota da edição: Em 30 de julho de 2020, em um movimento histórico, todos os chilenos puderam, pela primeira vez, retirar 10% de suas pensões. A medida teve como objetivo aliviar a profunda crise econômica gerada pela pandemia da COVID-19.
Atualmente, o Chile está no caminho para aprovar pela quarta vez esta retirada, defendida por alguns como a única maneira que a classe média tem de resistir à atual crise econômica. Enquanto isso, outros a veem como uma forma de hipotecar a poupança futura.
As retiradas das pensões vêm causando um profundo debate no país. O governo do presidente Sebastián Piñera tentou, sem sucesso, impedir as retiradas no Tribunal Constitucional. O principal argumento a favor das retiradas é que os mais de 33 bilhões de dólares anunciados pelo governo em ajuda social não alcançam a população. Dessa maneira, as pessoas tiveram que recorrer às suas próprias economias.
A situação também restaurou outra controvérsia acerca do sistema de pensões. O governo, por um lado, sugere somente uma reforma no sistema, que exigiria um aumento de 6% na contribuição individual. A oposição, por outro lado, solicita o fim do modelo atual das AFP, implementado durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
Por Guillermo Garcés*
As maiorias cidadãs, ou seja, as assalariadas, as prestadoras de serviços ad honorem e as desempregadas: condenadas eternamente à miséria por um sistema de elitismo, justificado por indicadores macroeconômicos.
Os economistas especialistas nacionais inundam os noticiários comentando as medidas do Banco Central e, em uníssono, nos alertam dos perigos do “reaquecimento da economia nacional”, com iminente desequilíbrio macroeconômico. Segundo eles, essa situação forçará a inflação nos preços de mercado como resultado de uma cidadania que passa a ter dinheiro no bolso (proveniente da retirada da sua poupança obrigatória nas AFP, Administradoras dos Fundos de Pensão) ou nas contas-correntes. Com isso em mente, é válido se perguntar: para que sustentar um modelo que deixa de funcionar corretamente em tal cenário?
Isso quer dizer que tal modelo não é viável quando a cidadania está em situação de pleno emprego, com salários dignos (ou seja, que por todo um mês de trabalho, o salário seja capaz de cobrir os custos de vida e sobra algo para economizar para imprevistos), já que tal situação de bonança do povo atentaria contra seu equilíbrio e correto funcionamento.
Ou, em outras palavras, tal modelo só pode funcionar “equilibrada e perfeitamente” em um cenário onde só uma porcentagem da população tem acesso à prosperidade descrita anteriormente e, necessariamente, uma maioria deve aceitar que sua perspectiva vital é a miséria eterna, em prol de não prejudicar o bem maior, a saber, que o Chile conte com uma saudável macroeconomia que ostentará nos acordos com países da região, da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e do mundo.
A essa altura, irrompe a incógnita acerca de como se representa essa elite a essa maioria de cidadania sem expectativas dentro do seu modelo econômico. O que acreditam que são?
Definitivamente não seus iguais, nem seus semelhantes, nem seus compatriotas. Em tal contexto, se entendem as bancadas que sofremos governo após governo, para definir “aumento de um salário mínimo” com cifras de fome, dignas do humor sarcástico.
Nessa falta de perspectivas da maioria, que interesse a cidadania pode ter nas medidas de políticas econômicas do Banco Central, sejam estas expansivas (as aplicadas há 16 meses) ou contracionistas (aplicadas nos últimos 45 dias, com uma triplicação da taxa de juros de referência, para as transações bancárias)?
Segundo os especialistas que viemos escutando, tais medidas “preventivas” são um “alerta” a Piñera, que está ousando atender à crise econômica das maiorias pelas quarentenas do Covid 19, colocando em prática a entrega de um auxílio familiar de emergência (Ingreso familiar de Emergencia – IFE), e assim aumentando desnecessariamente o gasto fiscal. Segundo nos explicam os especialistas, o que acabamos de descrever incide muito nesta ameaça inflacionária, e não a “competição saudável de preços”, a qual de nenhum modo poderíamos caracterizar como especulação de preços. Porque se esse fosse o caso, nos dizem, eles contam com medidas para sancionar preços abusivos. Se tais afirmações fora da realidade não causassem tanta dor e desmoralização, poderiam nos arrancar um sorrisinho irônico.
Então, se entendemos bem o que dizem, devido ao aumento da quantidade de dinheiro que hoje conta a cidadania, ocorre o aumento da demanda de produtos e isso leva, automaticamente, pelas “leis econômicas” (que são da mesma qualidade que as leis naturais) ao aumento dos preços da maior parte dos produtos da “cesta básica familiar” (produtos que as famílias mais consomem, incluindo alimentos, transporte, vestuário, saúde, educação e outros).
Se, diante desta descrição, e fruto da nossa ignorância, questionássemos sobre a possibilidade de se fixar uma faixa de preços máximos desses produtos da cesta básica familiar – para prevenir que quem vende esses produtos e serviços não possa especular com os preços, obter um lucro excessivo à custa de seus “clientes” – escutaríamos um forte grito descontrolado, porém profundamente sagaz, que nos diria que essa é a resposta de irresponsáveis e populistas que ocasionaria, como consequência imediata, a escassez (provavelmente as pessoas comerão muitos mais pratos de comida que os habituais, andarão de metrô e de ônibus muito mais que o necessário, talvez até de táxi, usarão uma roupa melhor, inclusive podem comparecer à sua visita adiada ao médico, quem sabe tratarão suas cáries e, enfim, várias excentricidades como estas).
E então, continuarão os especialistas, surgirá a monopolização dos bens cujos preços foram fixados, surgindo o problema do mercado ilegal. Existindo preços artificialmente baixos e um incentivo à demanda desproporcionada, surge um estímulo perverso para que certos oportunistas comprem os produtos a baixo preço e os revendam ao preço que desejem (não se engane o leitor desprevenido, acreditando que os especialistas aludem ao famoso conluio de farmácias, ou ao de produtores de frangos abatidos, ou ainda ao de papel higiênico, etc., esclarecemos que não é assim).
Resumindo: há zero possibilidades para as maiorias dentro deste modelo. Ou elas se resignam à sua “natureza de eternos pobres” ou, se conseguem através de pressão e mobilização melhoras nas suas rendas, terão que assumir a inflação ou a hiperinflação, o desabastecimento (filas para comprar) e o sobrepreço no mercado ilegal; tudo por apoiar populismos que não atendem à macroeconomia.
Os especialistas nos acusam de colocar palavras em suas bocas, conteúdos inexatos e mal intencionados. Dizem que seu modelo daria sim um acesso para que as maiorias alcançassem os benefícios e a prosperidade de salários dignos, e que a chave é simples – formação superior, técnica e profissional; o que fará diferença em nossa “diversificada economia” que, como caracteriza Cayuqueo, grande intelectual mapuche, baseia-se na venda de “pedras, paus e peixes”.
Não precisamos discutir esse ponto, a situação de centenas de milhares de jovens, primeiras gerações de sua classe que, seguindo essa chave tão simples, hoje estão majoritariamente endividados; não estão desempregados, e sim trabalhando em ofícios mal pagos, muito distantes do que consta em seus diplomas.
Finalizando, gostaria de agradecer o esclarecimento dos economistas especialistas do país. E também a nosso povo, que avança na descrença acerca de que a institucionalidade tenha algum interesse em resolver suas necessidades, e que não busque a manutenção e projeção dos privilégios da elite.
E paralelamente, levanta uma nova esperança e reconhecimento fundamental na organização cidadã e suas múltiplas, diversas e distintas atividades de protesto, inspirando uma nascente crença em que a mudança é possível; rejeitando verdades absolutas, com uma energia gregária que pulsa a necessária ação transformadora, por um novo Chile.
*militante Partido Humanista
Traduzido do espanhol por Beatrice Tuxen / Revisado por Graça Pinheiro