O IPCC traz a advertência mais dura de todos os tempos em seu primeiro grande relatório climático desde 2013: os graves impactos do aquecimento global são agora inevitáveis.
Por Reynard Loki
Em um relatório aterrorizante divulgado em 9 de agosto, o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) diz que as mudanças no clima foram “inequivocamente” causadas pela atividade humana, e que, dentro de duas décadas, o aumento das temperaturas fará com que o planeta atinja um ponto crítico significativo no aquecimento global. Os autores do relatório – um grupo dos maiores cientistas climáticos do mundo convocado pelas Nações Unidas (ONU) – preveem que, até 2040, as temperaturas médias globais serão mais quentes que 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, causando ondas de calor mais frequentes e intensas, secas e eventos climáticos extremos. O Secretário Geral da ONU, António Guterres, chamou as descobertas assustadoras de “código vermelho para a humanidade“.
O relatório constatou que o aquecimento global aumentou a um ritmo mais rápido do que as previsões anteriores estimavam. “Não há dúvida de que a influência humana aqueceu a atmosfera, o oceano e a terra… [e] a um ritmo sem precedentes, pelo menos nos últimos 2 mil anos”, diz o mesmo relatório. “A atmosfera, o oceano, a criosfera e a biosfera têm sofrido mudanças amplas e rápidas”. Mesmo com as reduções acentuadas e rigorosas decretadas pelas nações mundiais sobre as emissões de gases de efeito estufa, estima-se que o aquecimento global, em geral, ainda aumente em torno de 1,5ºC nos próximos 20 anos. Isso significa que o futuro mais quente e perigoso que os cientistas e o acordo climático de Paris tentaram evitar é agora inevitável.
Linda Mearns, uma cientista climática experiente do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos e uma das coautoras do relatório, alertou: “É certo que vai piorar”, acrescentando que “não há para onde fugir, não há para onde se esconder”. Em entrevista ao The Hill, Kim Cobb, a principal autora do primeiro capítulo do relatório, disse: “Já estamos claramente cambaleando de tantos impactos destacados pelo relatório, especialmente na categoria de extremos, que estão se apoderando das manchetes e causando muitos danos, mas, é claro que o mundo 1,5ºC mais quente é notavelmente e visivelmente pior”.
“Os sinais são alarmantes, e as provas, irrefutáveis”: As emissões de gases de efeito estufa provenientes da queima de combustíveis fósseis e do desmatamento estão sufocando nosso planeta e colocando bilhões de pessoas em risco imediato” afirmou Guterres, em uma declaração sobre o relatório. “O aquecimento global está afetando todas as regiões da terra, com muitas das mudanças tornando-se irreversíveis”.
Há certa esperança de que os piores impactos da catástrofe climática possam ser evitados, mas o tempo para tentativas está se esgotando rapidamente, e muitas ações devem ser tomadas, com urgência e conjuntamente pelos governos, setor privado e sociedade civil – uma tarefa difícil. “Peço novamente aos doadores e bancos multilaterais de desenvolvimento que destinem pelo menos 50% de todo financiamento climático público à proteção das pessoas, especialmente mulheres e grupos vulneráveis”, clama Guterres. “Os gastos de recuperação da COVID-19 devem estar alinhados com os objetivos do Acordo de Paris”. E a promessa de uma década para mobilizar anualmente 100 bilhões de dólares para apoiar a mitigação e adaptação ambiental nos países em desenvolvimento deve ser cumprida”.
As principais partes interessadas na resposta à crise climática são os povos indígenas ao redor do mundo, particularmente vulneráveis aos impactos diretos das mudanças no clima, pois muitas vezes estão nas áreas mais afetadas da natureza e dependem de ecossistemas saudáveis para sobreviver. A crise também acrescenta outra dificuldade à longa lista de obstáculos que as comunidades indígenas enfrentam há séculos, incluindo perda de terras e recursos, violações dos direitos humanos, discriminação, marginalização e desemprego.
Na COP26, a próxima conferência das Nações Unidas sobre o clima, que ocorrerá em Glasgow, em novembro, os negociadores devem incluir vozes, conhecimentos e necessidades indígenas ao traçarem o plano mundial de mitigação climática. Espera-se que eles mantenham o sentimento expresso durante a Conferência Ministerial de Clima e Desenvolvimento da COP26, realizada em março, onde foi enfatizada a “importância de aproveitar o conhecimento dos povos indígenas, mulheres, comunidades rurais, jovens e autoridades locais, juntamente com a importância de buscar uma postura baseada no respeito aos direitos humanos”.
Vehia Wheeler, cofundadora da Sustainable Oceania Solutions, uma pequena empresa social sediada no Havaí, comandada por mulheres e que busca educar os jovens cientistas cidadãos da Oceania usando conhecimentos ancestrais em parceria com a metodologia STEM, pediu que as vozes indígenas e suas soluções climáticas fossem defendidas na COP26. “Os sistemas de conhecimento indígena devem ser um guia para o futuro”, disse ela em um tweet compartilhado pela COP26 recentemente.
Uma das principais razões pelas quais as comunidades indígenas do mundo devem desempenhar um papel central na luta contra o clima é o fato de possuírem ou administrarem uma quantidade desproporcional de regiões oficialmente protegidas, regiões que sofreram um baixo impacto humano. De acordo com uma avaliação sobre a crise de extinção de espécies emitida pela Plataforma Intergovernamental de Política Científica da ONU sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), em 2019, os povos indígenas ocupam 28% das terras do planeta, e mais de 40% das áreas formalmente protegidas – e 37% de todas as áreas terrestres restantes com baixo impacto humano. “As ações humanas alteraram 75% do ambiente terrestre e cerca de 66% do ambiente marinho”, afirma o relatório do IPBES. “Em média, essas alterações foram menos severas ou evitadas em áreas mantidas ou administradas por povos indígenas e comunidades locais”. Os índices de desmatamento em toda a Amazônia, por exemplo, são duas a três vezes menores nas terras ocupadas pelos povos indígenas.
Em outras palavras, quando se trata da conservação da natureza e da biodiversidade – estratégias importantes na batalha para salvar o clima – essas comunidades estão fazendo muitas coisas certas. Ao contrário do ponto de vista ocidental, de que a natureza é algo que os humanos podem e devem dominar, as comunidades indígenas em todo o mundo têm vivido em harmonia com ela, vendo a vida no planeta como parte de um todo interligado. “Colocamos nossos parentes não-humanos em primeiro lugar, ou seja, as árvores, o céu, a água”, disse Nikki Cooley, co-gerente do programa Tribes and Climate Change para o Institute for Tribal Environmental Professionals em Flagstaff, Arizona, no ano passado. “Nós não os tratamos como objetos a serem estudados em um laboratório. Nós os reverenciamos”.
Ao trabalharem intimamente com a terra e seus recursos naturais, os povos indígenas, muitas vezes guiados por uma mistura holística da ciência atual e do conhecimento tradicional, vêm mitigando com sucesso os riscos climáticos e se adaptando às mudanças no clima e no meio ambiente há gerações. “Os povos indígenas sempre estiveram numa situação de vulnerabilidade”, disse Cooley. “As tribos sempre estiveram se adaptando às mudanças climáticas. Agora temos que nos adaptar ainda mais rápido”.
Ex-político dos Territórios do Noroeste, Canadá, e negociador chefe da Łutsël K’e Dene First Nation, Steven Nitah escreve, em comentário recente no One Earth: “Em todo o mundo, as pessoas veem a necessidade cada vez mais urgente de enfrentar a dupla emergência da mudança climática e da perda da biodiversidade. Podemos avançar em ambas as direções se o mundo também reconhecer a liderança dos povos indígenas que administram as terras e águas mais saudáveis, intactas e ricas em biodiversidade que restam na terra”.
O relatório do IPBES de 2019 constata que a atual modelagem em escala regional e global necessita de contribuição indígena e sugere que as autoridades políticas considerem “as visões, perspectivas e direitos dos povos indígenas e comunidades locais, seu conhecimento e compreensão de grandes regiões e ecossistemas e seus caminhos de desenvolvimento futuro desejados”. O Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais para os Povos Indígenas da ONU apoia essa visão, argumentando que as comunidades indígenas são “vitais e ativas nos muitos ecossistemas dentro de uas terras e territórios, e podem, portanto, ajudar a aumentar a resistência destes ecossistemas” e acrescenta que “os povos indígenas interpretam e reagem aos impactos das mudanças climáticas de forma criativa, recorrendo ao conhecimento tradicional e a outras tecnologias para encontrar soluções que possam ajudar a sociedade em geral a lidar com as mudanças iminentes”.
“A gravidade da emergência climática tem sido incansavelmente apontada pelas comunidades indígenas e locais por décadas”, afirmou Tom Goldtooth, diretor executivo da Indigenous Environmental Network (Rede Ambiental Indígena, em tradução livre). “Devemos pressionar o IPCC antes que o relatório de mitigação saia, no início do próximo ano, para que as vozes dos detentores do conhecimento tradicional dos povos indígenas sejam ouvidas, e assim acabar com a precificação e a captura do carbono e com as estratégias de mitigação da gestão da radiação solar que mantêm a utilização dos combustíveis fósseis”.
“As linhas de frente já estão muito mais avançadas que os políticos. Somos os que mais apresentam soluções para os problemas atuais. Soluções vindas de sistemas de energia solar comunitários que criam empregos seguros e bem pagos apenas com esforços de recuperação que garantem a construção sustentável e segura das comunidades mais afetadas pela crise, conforme as necessidades de cada comunidade”, disse Elizabeth Yeampierre, diretora executiva da UPROSE e co-presidente do conselho de administração da Climate Justice Alliance. “Para realmente enfrentar a crise climática, precisamos que as autoridades políticas adotem políticas ousadas e transformadoras, como o THRIVE Act, que foi elaborado através de uma intensa consulta e parceria com comunidades de diversas etnias e das Ilhas do Pacífico, pobres e marginalizadas”.
E embora esteja claro que o conhecimento indígena é fundamental para resolver a crise, o futuro está nas mãos de todos. E não se trata apenas de enfocar no que a sociedade emite para a atmosfera (o mito do net-zero), mas de como nos comportamos como consumidores de forma geral. O que comemos, o que compramos, para onde viajamos: tudo isso degrada o meio ambiente até certo ponto e impacta o clima. “Todos os dias, causamos algum impacto no planeta”, disse a famosa primatologista Jane Goodall. “Temos uma escolha quanto ao tipo de impacto causado”. É uma responsabilidade que recai sobre os ombros de indivíduos, bem como de líderes mundiais de indústrias e governos.
Para sobreviver à emergência climática que tomou conta do planeta, cada um de nós precisa olhar para si mesmo e reconsiderar nosso comportamento como consumidores, donos de casa, pais, viajantes, motoristas e eleitores. O apoio deve ser dado aos líderes políticos, jovens, empresariais, cívicos, indígenas, LGBTQ, do movimento feminista e do movimento negro que estão focados em soluções climáticas justas, equitativas e baseadas na ciência. “Se combinarmos forças agora, podemos evitar a catástrofe climática”, declarou Guterres. “Mas, como o relatório [do IPCC] deixa claro, não há tempo para atrasos e não há espaço para desculpas”.
Esse artigo foi produzido pela Earth | Food | Life, um projeto do Independent Media Institute.
Reynard Loki é redator do Independent Media Institute, onde atua como editor e correspondente-chefe da Earth | Food | Life. Trabalhou anteriormente como editor de meio ambiente, alimentos e direitos dos animais na AlterNet e como repórter da Justmeans/3BL Media, cobrindo sustentabilidade e responsabilidade social corporativa. Foi nomeado um dos 50 melhores jornalistas de saúde e meio ambiente para seguir em 2016 pela FiltroBuy. Seus artigos foram publicados pela Yes! Magazine, Salon, Truthout, BillMoyers.com, CounterPunch, EcoWatch e Truthdig, entre outros.
Traduzido do inglês por Marcella Santiago / Revisado por Felipe Gomide Balduino