Por muito tempo as sociedades ocidentais acreditaram cegamente na prevalência absoluta de seus valores democráticos, bem estabelecidos em seus textos constitucionais e, melhor ainda, bem gravados no inconsciente coletivo. Seus direitos, seus espaços de liberdade e suas responsabilidades sociais sustentaram – durante gerações – um ideal sobre o qual se constroem projetos de nação e se alimenta a ilusão de alcançar seus propósitos coletivos. Dentro desse contexto, houve espaço para a criação de instituições confiáveis em defesa dos valores cívicos, graças a incontáveis batalhas em função destes objetivos.
Hoje, porém, ninguém tem tanta certeza dessa realidade. Aos poucos, devido a um estado de emergência que decorre de um estranho surto viral, cidadãos de todo o mundo viram a forma como seus contextos de vida se transformaram, bem como várias de suas liberdades e direitos passaram a ser objeto de medidas restritivas; no entanto, essas restrições partiram não das autoridades científicas e sanitárias, mas das plataformas políticas e dos centros de poder econômico, que viram nesta catástrofe a oportunidade para exercer um controle absoluto.
A nova realidade constitui uma ameaça real aos sistemas de governo fundados sobre o equilíbrio dos poderes. A imposição de medidas, no contexto atual, tornou-se a nova normalidade, deixando milhões de pessoas ao redor do mundo praticamente sem meios de fazer oposição. Muitas delas se sentem presas a uma rede difícil de escapar, sujeitas a decisões que muitas vezes atentam contra os sagrados direitos estabelecidos em normas e tratados, em textos constitucionais e tradições.
Atualmente, observamos, paralisados, a governantes sem qualquer autoridade científica estabelecerem proibições ao uso de medicamentos ou tratamentos, baseados em critérios de interesse econômico e em seus vínculos com grandes consórcios farmacêuticos. Observamos, também, a maneira como restringem a mobilidade dos cidadãos em áreas públicas e em horários determinados, enquanto, em contrapartida, tentam favorecer seus aliados do setor empresarial e exercem uma dura repressão contra qualquer tentativa de protesto dos cidadãos.
O tema das vacinas, por outro lado, objeto de incontáveis discussões no campo acadêmico-científico, sobre o qual, depois de mais de dois anos, ainda não existe consenso e nem um fluxo de informação totalmente confiável para a população, é hoje uma pedra de toque capaz de provocar uma grave cisão entre governantes e governados. Por um lado, porque os primeiros possuem o mecanismo da obrigatoriedade e, por outro, devido ao critério da liberdade individual, em que cada pessoa decide o que melhor convém com relação à sua saúde, de acordo com os valores democráticos.
A crise está servida. A queda de braço entre os governos administrados a partir de uma visão incompatível com os valores democráticos e cidadãos conscientes da forma como estes valores se evaporam sobre a ameaça de restrições orientadas em direção ao controle absoluto, é a semente de uma perigosa volta aos sistemas ditatoriais, indiferentes a seus princípios democráticos e, evidentemente, afastados da procura por diálogos e consensos. A perspectiva atual é um verdadeiro enigma para os cidadãos, tendo em vista o escasso espaço permitido à sua participação em algo que lhes diz respeito de maneira direta. Nessa delicada conjuntura, esperaríamos uma melhor condução da crise, mas do ponto de vista das instâncias científicas e não dos interesses falsos de governantes cegados pela sua ambição de poder. O objetivo não é nada fácil, mas é indispensável garantir a tantos habitantes no mundo que sua vida também é valiosa.
Traduzido do espanhol por Naiara Luiza Parolin Bastos / Revisado por Graça Pinheiro