RESISTÊNCIA CULTURAL
O Cine Guaraci, localizado na Rua dos Topázios, 56, Rocha Miranda, subúrbio carioca, foi inaugurado em 1954 como a mais bela sala de cinema do estado, contando com decorações em art déco e art nouveau. E por mais de 30 anos, o cinema fez parte da vivência do bairro. Além de sua suntuosa arquitetura e seus 1.300 lugares, o cinema já naquela época contava com refrigeração, segundo a Revista Tela Suburbana. Tanto requinte, luxo e conforto fizeram do cinema o principal empreendimento local, atraindo multidões de espectadores que lotavam a sala diariamente. Dessa forma, o Cine Guaraci se tornou o maior vetor de formação do centro comercial da região, que se encontra todo ao redor do prédio. Muitos moradores do bairro ainda recordam as sessões de cinema e a rotina de lazer e descontração gerada pelo cinema.
“a sala de espetáculos possuía bombonière em madeira trabalhada, paredes pintadas nas cores azul, dourado, rosa e branco, luzes indiretas e moderna (e única) cortina cor de vinho abrindo e fechando automaticamente, bem como projetores advindos da Alemanha e da Itália, afora de, no corpo de empregados funcionários elegantemente uniformizados. Esse realce alcançado pelo Cine Guaraci foi registrado, também, pela revista Tela Suburbana, como a sala responsável por instaurar o processo panorâmico, ou em outras palavras, de trazer suntuosidade, requinte e beleza. O Guaraci, de certa maneira, com seu decorativismo acentuado e o uso de materiais nobres representa o final da chamada “época de ouro” dos cinemas, período da abertura dos grandes e luxuosos cinemas.” (Dias, 2014, p. 9)
Movimento Cine Guaraci Vive
O cinema teve suas atividades encerradas em 1989 e desde então, o local contabiliza 32 anos de abandono, porém não sem lutas – as mobilizações de moradores já somam mais de duas décadas. Pois o cinema já sofreu várias tentativas de destombamento e modificação de uso, sancionadas e depois revogadas por pressão popular, o que comprova a importância do espaço para os habitantes do bairro e arredores. O imóvel foi tombado pelo Estado do Rio de Janeiro em 2003 no governo Rosinha Garotinho na lei nº 4156/2003; através de um projeto de lei de autoria de Pedro Fernandes (nº 2450/2005), o espaço foi parcialmente destombado pelo mesmo governo para fins comerciais em 2006 com a lei nº 4777/2006, contudo, dois dias depois, foi novamente tombado pela prefeitura da cidade no mandato de César Maia com o decreto nº 26.644/2006. O próprio projeto CineCarioca, criado no governo municipal Eduardo Paes de 2012, nasceu de uma visita do então secretário municipal de cultura, Sérgio Sá Leitão, que, admirado com a exuberância e potência do imóvel, e somado com a expressão popular do Movimento Pró Cine Guaraci que, com parcerias parlamentares, apoio de estudantes que participaram do Projeto Curta, e adesão da população de Rocha Miranda na Caminhada pela Paz e Cultura, manifestação realizada no dia 06 do 11 de 2011 em defesa do Cine Guaraci, definiu como prioridade a revitalização desse e dos demais cinemas de rua abandonados no Rio de Janeiro.
Agora, o histórico cinema de Rocha Miranda, por projeto de lei nº 138/2017 do vereador Jair da Mendes Gomes, promulgado na Câmara Municipal como a lei nº 6331/2018, após veto do executivo municipal, passou por um destombamento parcial do imóvel para fins comerciais, garantindo somente a manutenção da fachada. Dessa forma, iniciou-se uma obra de destruição interna do histórico cinema para a implantação de uma loja de departamentos. Em estudo recente realizado pela Secretaria Municipal de Cultura da capital fluminense, o secretário Marcus Faustini, em parceria com o Instituto Pereira Passos, publicou um mapa das instituições culturais da cidade do Rio de Janeiro. E o que se comprovou foi como a região suburbana, composta por bairros da zona norte e zona oeste, é um verdadeiro deserto cultural, com pouquíssimas instituições culturais na região onde fica a maior parte da população carioca e que abriga a maior parcela da população economicamente ativa da cidade. O resultado foi tão assustador que o Secretário Municipal de Cultura incluiu no edital da Lei Municipal de Incentivo à Cultura o artigo que obriga as empresas patrocinadoras a destinarem 20% da sua cota de patrocínio cultural para projetos que sejam sediados e realizados nas regiões norte e oeste da cidade.
Em contradição com essa nova diretriz da Secretaria Municipal de Cultura, diversos equipamentos culturais da região suburbana estão abandonados, como o Cine Vaz Lobo; ou estão sendo destruídos, como o Largo do Campinho, local histórico da formação e urbanização do Subúrbio Carioca, que foi completamente desmantelado para a construção da via expressa TransCarioca e o Cine Guaraci, como citado anteriormente. Nesse caso específico, as irregularidades e o desrespeito à memória e à necessidade pública do bairro são gritantes. A obra em curso não possui arquiteto, engenheiro e restaurador responsáveis, como comprova a placa de obra exibida no prédio. Não obstante, a abertura de uma loja de departamentos não reflete em nada a necessidade local, pois, por ser maior e vender mais barato, irá comprometer, e em alguns casos, até falir, os estabelecimentos comerciais que já funcionam no Centro Comercial do bairro. Ao invés de gerar emprego e renda, irá, a curto e médio prazo, comprometer as rendas e os empregos existentes nesta região.
Um Centro Cultural, com sala de cinema, sala de teatro, mini casa de show, espaço para galeria e realização de oficinas artísticas, como é pretendido tanto no Cine Guaraci como no Cine Vaz Lobo, por exemplo, em lugar de competir com o comércio local, irá fomentar a região gerando mais empregos e atratividade: haverá aumento do número de moradores e visitantes circulando nos bairros e ampliação do horário de funcionamento comercial até a noite, o que, inclusive, traz segurança.
A região suburbana carioca, juntamente com outras periferias da região metropolitana, é um importante vetor econômico e populacional do Estado do Rio de Janeiro. Não cabe mais manter tais ambientes apartados das atividades e produções artístico-culturais. É nesse sentido de democratização do acesso aos bens culturais e da produção dos mesmos que o Movimento Cine Guaraci Vive, o qual surgiu com a urgência de salvar o cinema da obra atual, integrado com a Associação de Amigos do Centro Cultural Cine Guaraci e o Movimento Pró Cine Guaraci, vem realizando ações que resgatam a histórica pauta em defesa do patrimônio de Rocha Miranda. Atualmente, o movimento circula um abaixo-assinado em Rocha Miranda e organiza uma nova manifestação popular na frente do cinema, após dois atos simbólicos que foram acompanhados pela grande mídia, além de forças com os demais movimentos populares em defesa de patrimônios e da utilização dos mesmos como equipamentos culturais, tendo inclusive apoio do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural.
Centro Cultural ao Ar Livre realizado (28/08/2021) na Praça 8 de Maio – Músico Magrão – imagem de Jacqueline Melo
