CRÔNICA
Por Marco Dacosta
A famosa MJ Rodriguez da série “Pose” da Netflix recentemente voltou às ruas Newark, uma cidade da região metropolitana de Nova Iorque – mas que oficialmente fica em Nova Jérsei, para lembrar sua infância na cidade. Ao som de outra cria do lugar, Gloria Gaynor, seus fãs cantarolavam “I will survive” – canção que virou um hino à resiliência e a todos que vencem desafios e que um dia sentiram-se derrotados. As ruas centrais ainda marcam as recordações dos anos de tormenta, quando a violência policial e a segregação provocaram fortes reações, com multidões depredando lojas e que acompanhou um processo de esvaziamento econômico, desindustrialização e crescimento da violência.
Durante muitos anos Newark – ou “Brick City” – como é identificada na cultura popular e no hip hop – era apontada como epicentro da decadência urbana norte-americana, que acompanhou o abandono das fábricas de Detroit, Chicago e outras regiões que concentravam indústrias. A cidade que vê os arranha céus de Nova Iorque ao longe foi desde a segunda guerra mundial um importante polo de fabricação de armas – talvez o mais importante do mundo, que também deixou um rastro de lotes contaminados por produtos químicos e depósitos abertos de lixo.
MJ Rodriguez passou como um furacão pela Broad Street, central artéria da cidade, arrancando aplausos e gritos. ‘E mais uma filha famosa retornando a casa – dizia uma senhora com o cabelo coberto de glitter. Newark, assim como a música tem intimidade com a tristeza e o lamento, mas também como sua divas, Whitney Houston, Gaynor, Sarah Vaughan, viveram relações abusivas, derrotas e crises e superaram as dificuldades. Desde 2004 a cidade vem se recuperando, em imagem e na economia, vencendo a violência, reduzindo os enfrentamentos da sociedade com a policia, fomentando artes e incentivando dezenas de novas organizações comunitárias de arte e cultura.
Poucas áreas americanas sofreram mais bombardeios da mídia como lugares violentos e abandonados. – talvez somente Detroit e o sul do Bronx possam competir com filmes e manchetes que despejaram medo e esvaziamento econômico dessas cidades. No imaginário do imigrante recém chegado, são muitas vezes áreas proibidas, evitadas, por conta de anos de cenas violentas retratadas na ficção e no jornalismo. Muitos latinos – a região é uma das que mais concentram imigrantes Brasileiros – ainda evitam transitar nas ruas centrais, fora das suas zonas de conforto e conhecimento. Há ainda muito racismo e preconceitos contra as áreas de predomínio negro da cidade, mas aos poucos essas barreiras vão sendo quebradas por eventos culturais, de música e novos parques que estão sendo ampliados e integram diferentes zonas. Toda a margem direita do rio Passaic, que corta a cidade, esta sendo revitalizada com nova cobertura verde. Aos poucos áreas industriais e contaminadas estão se tornando residenciais e saudáveis para ocupação. Há uma revolução verde em muitas áreas portuárias e Newark está cada vez mais sendo beneficiada por novos projetos habitacionais. A fuga de jovens profissionais dos altos alugueis de Nova Iorque anima os cafés, bares e até um novo estádio de esportes.
As cidades são organismos vivos e em movimento. Assim como as divas da música, se recuperam com um novo palco e maquiagem. Newark passou por fases de rebeliões que entraram para a história dos direitos civis – parte de muitas conquistas para imigrantes também foi resultado dos conflitos travados na Broad Street no final dos anos 60. Os risos de Jerry Lewis, o rei da comédia norte-americana, os magníficos lances de Shaquille O’Neal no Basquete, o sarcasmo de Ice-T no rap e na TV, a alegria e o sorriso de Queen Latifah, tudo isso só foi possível acontecer porque Newark também é um reduto criativo, uma ponte com a grandiosidade de Nova York – muitas vezes atuando como a periferia da maior e mais influente cidade do mundo por muitas décadas.
Newark, como uma das cidades mais segregadas da América, teve também seus bolsões de imigrantes. O ironbound, hoje predominantemente hispânico, português e Brasileiro já abrigou enormes contingentes de italianos e poloneses. Muitos ainda hoje evitam cruzar a Penn Station em direção a Broad Street por acreditarem que não serão bem vindos às áreas predominantemente negras. Os preconceitos e temores do passado, tiram a oportunidade de muitos em conhecerem um incrível arsenal de cultura e comércio, um complexo de bibliotecas, centros culturais e um campus universitário onde centenas de estudantes e professores de diferentes países circulam e compartilham pesquisas e avanços nas artes e ciências. Um VLT – Trem leve sobre trilhos circula por casarios históricos, pubs centenários e lugares que estão subutilizados por conta ainda de muita desinformação e preconceitos.
Newark do século XXI e uma colcha de retalhos de histórias, mágoas e também sorrisos. Como qualquer cidade, tem lugares ainda precisando de cuidado, tem ainda sérios problemas sociais, mas segue como um lugar cheio de novidades – a escassez provoca às vezes um turbilhão criativo. As pessoas começam a esquecer as linhas imaginárias da segregação e passam a descobrir as cidades dentro da cidade. Uma caminhada na Broad Street para comprar um tênis, um café na padaria portuguesa, um almoço no restaurante Brasileiro, um show no centro de convenções. Newark sem fronteiras duplica a capacidade da cidade em atender seus moradores e visitantes. E os carros chegam aos fins de semana, gente de todo lugar em busca de boa comida e diversão. Tem louvor, tem hip hop, tem samba e fado.
Newark não é somente a porta de entrada, com seu mega aeroporto recebendo quem vai para Nova York. E a terra do “I will survive” – um basta da tristeza e uma aula de como dar a volta por cima. Todo imigrante tem esse espírito e essa cidade encaixa-se como uma luva a quem precisa recomeçar e ou mudar de rumo.