Em 2014, após dezesseis anos de exílio, pude retornar para meu país natal, a Colômbia. Minha mãe já havia falecido e a última vez que a vi foi em 1998, enquanto embarcava em um avião com a promessa de nunca mais voltar.
Por Jhon Sánchez
Mas há sempre uma porta aberta para o retorno. Ao regressar a Medelín, eu me deparei olhando as fotografias que minha mãe deixou, suas cortinas, as figuras de porcelana que tanto amava. Dentro de um guarda-roupa, estavam todos os meus ternos, camisas, gravatas e sapatos sociais que usei enquanto exercia a advocacia na Colômbia. Primeiro minha mãe, e depois minha irmã, assumiram a tarefa de cuidar, passar e até engomar o colarinho das minhas camisas. Tirei a roupa e vesti o primeiro terno que comprei na vida: azul-marinho, com seis botões. Combinei com a mesma camisa e a gravata que usei na minha formatura. Me senti… pleno. Após me olhar no espelho, evocando a memória da minha mãe, guardei todas aquelas vestimentas em uma mala, entreguei-as para minha irmã e lhe pedi que as pusesse para doação. A memória já havia feito seu trabalho.
Vi uma cena semelhante no documentário Gönderen: İlhan Sami Çomak. İlhan Çomak é um poeta que está encarcerado desde os 21 anos de idade. Atualmente, ele tem 47 anos. No filme, sua mãe abre um baú de onde tira uma jaqueta cuidadosamente dobrada e mostra uma foto em que İlhan a está usando.
Para realizar esta entrevista, foi preciso escrever minhas perguntas, traduzi-las para o turco e enviá-las para seu advogado em Istambul. Expresso minha gratidão ao advogado e à tradutora por sua cooperação com este artigo. Pressenza irá publicar essa conversa quinzenalmente, com a esperança de chamar a atenção para o caso de İlhan e encorajar uma campanha pela liberdade do poeta.
İlhan, muito obrigado por nos conceder esta entrevista.
JS: Como está a sua saúde? Essa é uma pergunta importante, principalmente em tempos de Covid, considerando que você faz parte de uma população suscetível. Além disso, gostaria de saber se sua poesia foi afetada pela pandemia.
ISC: Acho que seria mais produtivo contemplar essa questão a partir de uma perspectiva maior, desde antes do coronavírus.
Minha saúde geralmente é boa, ou talvez deva dizer, milagrosamente está boa. A palavra “êxito” não descreve corretamente a proeza de sobreviver e de estar bem, por tantos anos, sob as condições cruéis da prisão que, por natureza, dilaceram sua vida. Por isso é que digo milagrosamente. Quando você está enclausurado de maneira contínua por 27 anos, não há necessidade de uma tortura adicional para o corpo entrar em colapso.
Esse lugar é, literalmente, um mar de concreto e metal, a terra não tem vegetação, nenhuma das flores e árvores que colorem a vida. O céu é medido pelos limites da janela e do pátio, não há animais para satisfazer a necessidade de tocar outra criatura viva e partilhar sua solidão. As prisões devem ter sido criadas para colocar fronteiras em torno do corpo, dos olhos e também da alma. Mas eu ainda tenho sorte, temos a visita de pequenos periquitos, e poder tocá-los tem sido um escape que refresca minha alma nesse deserto de concreto. É uma contradição que minha companhia aqui consista em pássaros, logo eles que são conhecidos por não reconhecerem os limites das fronteiras. Por outro lado, seu toque remanescente de liberdade os torna companheiros perfeitos, o que me traz grande alegria.
O que quero dizer é, se você quiser conhecer tudo que vai de encontro à natureza humana, deve começar a procurar aqui na prisão. Mas o horror não para aí. Não é exagero dizer que o corpo e a alma são testados em um martírio perpétuo, pois tudo acontece com esse objetivo. Sei pela minha própria experiência que existem muitos calvários aqui e que cada um carrega um tormento diferente.
Muitas pessoas que estão presas há tanto tempo quanto eu não conseguem aguentar essas terríveis condições. Recentemente, eu os presenciei sofrendo de doenças sérias, das quais nunca vão se recuperar. Alguns simplesmente não aguentam mais e morrem. A ideia de morrer, depois de todos esses anos, tão perto da liberdade… me enche de desespero. A dor é ainda pior quando eu vejo acontecer com alguém que conheço.
Com tudo isso em mente, é importante destacar a realidade das condições aqui quando me refiro a milagres na mesma frase em que digo que, até onde eu saiba, não padeço de nenhuma doença séria.
Há algum tempo, levo uma vida organizada e não me comprometo com autodisciplina. Mesmo conhecendo todas as dificuldades, tentei criar meu próprio espaço, usando o poder da imaginação. Eu me levanto e me deito em horários regulares, me exercito na minha cela estreita nas primeiras horas da manhã e me mantenho ocupado durante todo o dia, com apenas um propósito me guiando. O propósito? A poesia, é claro. Escrever poesia, ler e trabalhar para esse fim são o centro da minha vida. A poesia, e a literatura em geral, são meus pilares essenciais para combater esse “regime de maldade”. Organizo minha vida em volta dessas bases e posso dizer, com confiança, que a poesia fortalece meu corpo ao manter minha alma jovem e renovada. Todo esse movimento criativo é uma grande fonte de resistência que me mantém vivo. Escrevo poesia e ela me recompensa com um senso de propósito repleto do sentimento familiar de satisfação criativa que não pode ser vivenciado de nenhum outro jeito. Ela me provê de integridade espiritual por dentro e de saúde física por fora. Parece que fazemos bem um para o outro, eu aprecio a poesia e acredito que ela me aprecie também. E considerando que ela nunca me abandonou, isso deve ser verdade.
A Covid não causou nenhuma mudança drástica na minha vida. Houve algumas restrições na prisão devido à pandemia, mas não grandes consequências se comparadas com as mudanças que afetaram a vida das pessoas lá fora. No último ano, pessoas do outro lado foram confrontadas com restrições pela primeira vez e, como vivi a maior parte da vida com as mais rigorosas privações, fiquei muito interessado nas reações gerais das pessoas às mudanças. Também pensei que, após um encontro transitório com a vida de um prisioneiro, as pessoas teriam mais empatia e compreensão, que elas com certeza teriam uma melhor noção da importância inegável da amizade, do afeto e da vida social. Certamente, as pessoas agora enxergam a relevância das pequenas vontades que elas não puderam satisfazer, ou que foram obstruídas, e reconhecem como elas são benéficas para a saúde de várias maneiras.
Na verdade, a respeito da pergunta sobre se a pandemia alterou a minha poesia, acho que não posso responder agora, porque estamos isolados da brutalidade de seu impacto total. No final das contas, nossos sentimentos e a subsequente expressão criativa sempre levam algum tempo para se adaptar aos eventos e as palavras vêm depois. Mesmo assim, não acredito que a minha poesia tenha mudado por causa da pandemia, porque, apesar de toda a pressão emocional, não tive nenhuma experiência nova que afetasse minha escrita. Eu já vivo nesse pesadelo há 27 anos de qualquer jeito! A Covid não me trouxe novas palavras ou pontos de vista. Por outro lado, ponderei sobre a dificuldade que é fazer o que eu faço na prisão, ainda mais após passar o equivalente a uma vida inteira encarcerado e isso me fez perceber que a minha poesia devia ser apreciada em conjunto com a minha habilidade, perseverança e determinação constantemente testada.
A vida nunca foi fácil para mim e a minha poesia experimentou as mesmas dificuldades através dessas jornadas. Venho acompanhando as notícias sobre a Covid e suas incumbências letais com grande tristeza. Consequentemente, esse período me fez sentir como um verdadeiro cidadão do mundo, me fez sentir uma solidariedade maior e mais próxima com todas as pessoas do planeta. A pandemia também nos lembrou de que as pessoas, mais especificamente seus problemas, deveriam ser abordados com mútua compreensão. Será que todos entenderam esses recados? Eu não tenho certeza, mas estou feliz por perceber que, novamente, a minha árdua vida me ensinou algo tão sublime quanto respeitar a dor do próximo. É importante ser uma boa pessoa, estar do lado do bem e nunca esquecer de ser solidário. A Covid levou muitas pessoas, mas também nos mostrou os valores que precisamos recordar. Vamos nos certificar de nunca mais esquecê-los.
JS: Você pode nos contar o motivo da sua prisão? E de que maneira podemos contribuir para a sua liberdade?
ISC: Estou na prisão por dois motivos: um é bem visível e o outro, que pesa mais na balança, permanece escondido a olhos nus.
O motivo visível é que eu estive envolvido em vários problemas em Bingöl, onde nasci e cresci. Como se já não fossem o bastante, ocorreram incêndios florestais em Istambul durante o verão em que estudei lá. Informantes fizeram declarações irreais à polícia, incluindo a denúncia de que eu era responsável pelos incêndios. Em conjunto com essas declarações, um relatório oficial contendo os detalhes de praxe, realizado após me submeterem a um interrogatório e tortura durante 19 dias, transformou-se em acusação e tudo foi concluído quando me condenaram em um tribunal regido por um juiz militar.
As acusações por trás da minha condenação são incrivelmente inconsistentes, tão fora da realidade ou da lógica que a minha sentença foi anulada duas vezes, em uma dessas ocasiões inclusive por um Supremo Tribunal Militar Administrativo. Fui julgado três vezes em um período de 22 anos, mas a sentença original, ditada pela comissão de três pessoas do Tribunal de Segurança do Estado, em outras palavras, um tribunal com um juiz militar, nunca foi derrubada. Embora as leis atuais limitem sentenças que alcancem os 22 anos, fui condenado mesmo assim. Além disso, sou curdo e, por muito tempo, uma prática cruel, chamada de “lei do inimigo”, tem estado em vigor para punir os curdos. Foi isso o que quis dizer quando me referi ao outro motivo menos visível da minha condenação, esse é o que mais pesa na balança.
Para as pessoas que não se encaixam na definição do Estado de cidadão de bem, a realidade é impiedosa, é exatamente o que eu vivi, não é algo individual, sob vários pontos de vista. Ninguém consegue prever onde vai nascer e quem serão seus pais. Eu nasci de uma mãe e de um pai curdos e, a partir do momento em que abri meus olhos, esse destino veio acompanhado de um clima de discriminação, de opressão e de intensas dificuldades econômicas. Vivi em um entorno no qual fui proibido de falar a língua curda que aprendi com minha mãe, mas o problema não se limita apenas em ser um cidadão de segunda classe. Em retaliação ao conflito gerado pela proibição do uso da língua materna e pela incessante opressão e discriminação, o Estado age sem nenhuma consideração pela lei ou pelos direitos humanos universais, e eu sinto que preciso salientar que tudo isso ocorre pelo simples fato de sermos curdos. O fato de que estive aqui dentro por todos esses anos é o triste resultado desse tipo de existência.
Tenho certeza de que, como advogado, você já testemunhou isso na Colômbia: os fatos não são tão relevantes para os poderosos, pois seu objetivo gira em torno de intimidar as pessoas para que aceitem suas palavras como verdade. É por isso que existem tribunais nesse país: para ser a mão que une a palavra dos poderosos, a mão que chega impune na garganta dos marginalizados e os sufoca ao jogá-los em celas; uma mão que reprime os desejos de democracia e de legitimidade, impondo a disciplina e ações para manter todos na linha ao executar esses tipos de castigo. Como curdo, essa é a minha realidade desde que nasci.
Embora eu seja consciente desse destino predeterminado, tenho tentado por anos provar a minha inocência no tribunal e não consigo descrever como é cansativo. Por um lado, conheço a realidade: eu era inocente, realmente era inocente, tenho a necessidade de dizer isso em voz alta. Mas, por outro lado, eu sabia que estava sendo julgado de acordo com a “lei do inimigo” e que minhas palavras não seriam ouvidas. Acho que esse é meu grande impasse, eu queria tanto ser livre que fui ingênuo demais para achar que seria ouvido se simplesmente explicasse a realidade, em outras palavras, se explicasse que eu era inocente. Mas isso não aconteceu, não consegui ser ouvido em todos esses julgamentos, nem eles quiseram me ouvir, por isso, ainda estou aqui.
Minha pena deve terminar em três anos e meio. Em 2014, enviei uma petição ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e, nos últimos seis anos, meu processo tem estado no Tribunal Constitucional da Turquia. Estou esperando uma resposta para as minhas apelações, mas eles continuam em silêncio, estão demorando tanto para chegar a uma decisão que, às vezes, me pergunto se fui esquecido. Se a decisão for positiva, poderei sair da prisão, mas não posso cultivar nenhuma esperança. Ao que parece, seria necessário um poder capaz de forçar a mão do Tribunal Constitucional e do TEDH a agir, algo que não está ao meu alcance. No mais, é importante que meus amigos me ouçam. Talvez, isso não vá me libertar, mas deixará meu espírito mais livre. Eu não fui esquecido. Juntamente com a minha poesia, eu não fui esquecido. É isso que eu quero saber, é isso que eu quero que meus amigos me lembrem. Essa é a minha esperança.
Eu venho até você, Vida
para Ipek Özel
E a sombra da árvore balança,
pássaros passam toda sua sabedoria às asas.
O vento assopra uma saudação
e do sol vem a carência do tato.
É a linguagem dessas folhas
e a doçura que abordam,
agora que o tempo para rebelião chegou.
Ainda, nos montes há sempre a graça da privação.
Pense no rio quando tiver a chance.
O veio fluindo no livro das águas, o nó querendo ser desatado.
Eu falo do som de algumas cores. Ao negar
o verão abrace a primavera e com alguns passos cansados
me perdoe. Perdoe essa nuvem trepidante.
Eu venho até você com a dor de mãos feridas pela lama.
Eu venho até você dizendo, deixe a infância escalar o muro do jardim novamente.
Eu venho até você com a arte de respirar o sono até a alvorada.
Não derrube o muro do meu jardim.
Deixe o passeio se encher das formas delicadas das folhas.
Deixe a estrada sonhar com a cobertura da relva.
Não há cidade para se alcançar. Tudo está aqui.
Abra a janela. Abra enquanto os cavalos relincham
na amplidão do mundo. Abra sem falar nada
da brevidade do verão, a eternidade do inverno.
Abra, para o céu se agitar com os símbolos ocultos da minha mente.
Eu venho até você dizendo, “Abra a porta para a presença da existência”
enquanto o céu se agita em si mesmo.
Eu venho até você dizendo “Abra a porta da mudança.
Abra a porta da existência, para mim.”
İlhan Sami Çomak (1973) é um poeta curdo de Karlıova, província de Bingöl, Turquia. Ele foi preso em 1994. Da cadeia, Çomak lançou oito livros de poesia e se tornou um dos presos políticos mais antigos da Turquia. Em 2018, Çomak ganhou o prêmio Sennur Sezer de poesia por sua oitava coletânea, Geldim Sana (Eu Venho até Você).
Caroline Stockford Tradutora literária e juramentada de turco-inglês. Também trabalha como consultora sobre a Turquia para a organização PEN Norway.
Jhon Sánchez Escritor de ficção colombiano, o sr. Sánchez chegou a Nova Iorque buscando asilo político e agora é advogado lá. Em 2021, a editora e gráfica New Lit Salon Press irá publicar sua coletânea de contos “Enjoy a Pleasurable Death and Other Stories that Will Kill You”.
[1] Traduzido do turco para o inglês por Caroline Stockford (consultora sobre a Turquia da PEN Norway).
*Nota da tradutora: O título da matéria The Ladder (A Escada, em tradução livre) faz referência a um poema escrito em homenagem a İlhan Sami Çomak.
Traduzido do inglês por Ana Carolina Carvalho / Revisado por Graça Pinheiro