OPINIÃO
Por Paolo D’Aprile
“A história da humanidade não é a luta do bem tentando derrotar o mal. A história da humanidade é a luta de grandes males tentando esmagar a pequena semente de humanidade. Mas se em momentos como este homem conseguir reter algo de humano, o mal está condenado a sucumbir”.
Vasilij Grossman – Vida e destino
“Se o sistema eleitoral não for alterado, as eleições presidenciais do próximo ano serão canceladas”. A ameaça explícita desta vez não veio do presidente da república, mas de um general do exército, ministro da defesa e dos comandantes das três armas. A tímida e insubstancial reação institucional foi complementada por uma nova mobilização nacional envolvendo milhares e milhares de pessoas em todo o país. Infelizmente, essa enésima manifestação também foi baseada em um mal-entendido fatal: como de costume, não foi um apelo à luta ativa dos trabalhadores, mas uma espécie de reunião alegre, quase uma festa, com cartazes coloridos, famílias e crianças a reboque, para “tranquilizar”, para não sujar, para não assustar ninguém, vai que pegue mal…
Se a resistência das oposições e dos movimentos populares optou por combinar a forma de expressar sua dissidência – devido à incapacidade, à pusilanimidade e a uma certa dose de má fé – com uma demonstração lúdica, inútil e inofensiva de sua “diversidade”, o governo e suas milícias optaram por aproveitar ao máximo esta oportunidade. O governo e suas milícias continuam a endurecer suas ações com total sucesso e eficiência. O objetivo é desmantelar o estado, peça por peça, a fim de revendê-lo à iniciativa privada. E nisso eles são muito bons e estão conseguindo com grande sucesso. Indústria de ponta, a indústria petrolífera, gestão da saúde pública, correio, escolas e especialmente as universidades. Há alguns meses, o Ministro da Educação afirmou que as universidades públicas eram um antro onde estudantes e professores andavam nus, refestelados em orgias, tragando maconha cultivada nos gramados dos campi e drogas sintéticas produzidas nos laboratórios de química. Depois vieram os cortes dos repasses, e as universidades federais agora se encontram à beira do colapso.
O desmantelamento do sistema levou a uma quebra total, uma pane geral das plataformas do CNPq, o Centro Nacional de Pesquisa Científica, o órgão que reúne a produção acadêmica de cada professor, o sistema que coleta os dados científicos produzidos em todo o país: tudo parado, bloqueado, inacessível há mais de uma semana. Ninguém sabe o que realmente aconteceu ou como colocá-lo novamente em funcionamento. Não há apoio oficial. O risco de perder tudo é real e iminente. Isso significaria o colapso completo das atividades, da produção e da pesquisa universitária.
Enquanto isso, a devastação ambiental continua, e com ela, a aprovação da nova legislação do agronegócio destinada a revogar as velhas leis de preservação. E para deixar clara sua intenção, para comemorar o Dia do Agricultor, para representar o trabalho no campo, o governo usa seus canais oficiais e publica uma foto de um homem armado de fuzil: não uma enxada, mas um fuzil, uma clara homenagem às milícias a serviço do latifúndio que aterrorizam os pequenos proprietários, os sem-terra e os povos indígenas, desde sempre considerados um obstáculo ao desenvolvimento nacional. A nossa resposta? Algumas notas de repúdio, posts combativos no Face e alguns slogans ambientalistas, só.
A verdadeira resistência não está mais nos movimentos ou nos partidos de oposição. A verdadeira resistência é praticada em palavras e gestos cotidianos, as únicas ações reais que parecem ter sucesso na desestabilização do bolsonarismo. Como aquele padre de Fortaleza, cujas homilias denunciam as práticas genocidas do governo. Ele viu a igreja sendo invadida durante a missa por indivíduos exaltados elogiando Bolsonaro em palavras, obras e omissões, afastadas do culto pelos fiéis que se levantaram em defesa da incolumidade de seu pároco. Como o padre dos pobres, o Padre Júlio Lancellotti, que abre as portas de sua igreja à noite para acomodar os homens em situação de rua, para que elas não sofram o frio polar das noites geladas deste inverno atípico, quando a temperatura cai próxima de zero graus. Um amigo, observador atento da realidade brasileira, escreve-me de longe. Apaixonado por esporte, acompanha os Jogos Olímpicos e vibra muito quando vê um de nossos atletas subir no pódio. Diz:
“Comovente; com certeza esses atletas não representam Bolsonaro, mas da resiliência de seu povo, o povo brasileiro. Bravos! É assim que se combate o horror, com a beleza“. O meu amigo se refere a Mayra Aguiar, medalhista de bronze no judô, agora em sua terceira Olimpíada. Devido à pandemia que forçou o fechamento dos centros esportivos, ela treinou durante um ano na sala de estar de sua casa, usando sua irmã principiante como parceira de luta. Ele, meu amigo, se refere aos nossos atletas que, quando conquistam medalhas, são campeões duas vezes, no esporte e na vida. Como a fantástica Rebeca Andrade, campeã de ginástica, vinda de um projeto social da periferia de São Paulo: sem dinheiro do ônibus, ia ao treino a pé caminhando por duas horas. Meu amigo se refere ao nosso nadador, que devido à pandemia treinou por meses nas águas mortas de um açude e hoje carrega a medalha no peito.
Um ditado popular diz: “o melhor do Brasil é o brasileiro” Talvez meu amigo esteja realmente certo: a beleza, os gestos de solidariedade humana, a prática diária da democracia, são a nova resistência, uma dupla cambalhota, um mergulho, um ippon de judô, são a chave para recuperar a coesão social, a nova convivência que teremos que construir, a medalha da liberdade. Que os atletas brasileiros sirvam de exemplo: agora é a nossa vez.