CINEMA

Por Clodoaldo Lino

 

Recentemente tive a oportunidade de assistir ao filme Marighella, de Wagner Moura, que, a princípio, deveria ter sido lançado em 2019, mas que continua inédito no Brasil. A dificuldade em obter uma linha de financiamento junto a Ancine (Agência Nacional do Cinema) é o que, em ultima instância, vem impedindo que o filme chegue às telas brasileiras. A justificativa burocrática (de que a O2, produtora do filme, estaria inadimplente devido ao atraso na entrega de outro projeto) soa como uma desculpa esfarrapada para, no fundo, camuflar uma “censura branca” levada a cabo pela orientação ideológica do “desgoverno” Bolsonaro, que tem devastado o campo cultural brasileiro de uma maneira nunca vista. Apesar disso, o filme trilhou um percurso interessante no circuito internacional, com a exibição em mais de trinta festivais (entre eles o prestigiado Festival de Berlim), inclusive recebendo algumas premiações, especialmente com relação à atuação de Seu Jorge no papel de Marighella.

De imediato, o que me chamou a atenção (e me desagradou) em Marighella foi a sua filiação televisiva. O filme, na sua forma, remete às produções recentes da Rede Globo, tanto no que diz respeito às novelas, quanto, principalmente, às minisséries produzidas nos últimos anos. Essa herança televisiva se manifesta de maneira mais contundente através da adoção de uma narrativa calcada num realismo que insiste em enxergar o cinema (ou os produtos audiovisuais) como espelho do real. Nesse sentido, Marighella se aproxima de Tropa de Elite, de José Padilha, só que com um “sinal invertido”. Os dois são filmes de ação, com personagens heróicos, conspirações políticas e sequências de tiroteio com direito a câmera na mão e imagens tremidas, mas o “sinal invertido” se reflete na posição política assumida pelos respectivos roteiros. Enquanto Tropa de Elite tem como protagonista o capitão Nascimento, comandante do Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (BOPE) e aborda as questões do tráfico e da corrupção a partir de um viés moralista e reacionário, Marighella dá voz a um dos principais personagens da esquerda brasileira durante a luta contra a Ditadura Militar. No filme de Padilha, a identificação do público com o protagonista passa pela utilização do recurso da voz-over, com o personagem funcionando como o narrador da história; já Moura opta por preencher boa parte dos diálogos com frases de efeito que adquirem um caráter quase didático na construção da narrativa. Mas o discurso manifesto é secundário nos dois casos, uma vez que é na utilização de certos recursos da linguagem cinematográfica, visando à naturalização de uma determinada concepção de real, que reside a doutrina de ambos os filmes. Nos dois filmes a estética do documentário trespassa a ficção evocando uma aura de autenticidade, ao mesmo tempo em que a realidade é expressa em conflitos binários.

O fascínio exercido pelo cinema passa pelo apelo da presença do real, a despeito da sua ausência. A realidade se faz presente através de índices reconhecíveis pelo espectador, produzindo o efeito de real. Por conseguinte, a questão do realismo sempre foi um dos pontos chaves do debate cinematográfico. Ao longo da história do cinema, o realismo adquiriu diversos formatos e estilos, em muitos casos com um aceno crítico (um dos principais exemplos é, sem dúvida, o Neorrealismo Italiano). Mas o audiovisual contemporâneo (cinema incluído) é marcado por um realismo que se distancia do caráter crítico. A realidade passa a ser, cada vez mais, “espetáculo”, isto é, produzida e mediada pelos códigos impostos pela hipertrofia dos campos do audiovisual e da saturação midiática. Dessa maneira, as imagens ficam restritas a sua indicialidade, se afastando da experiência “real” e empobrecendo uma visão crítica. É importante ressaltar que toda experiência (“real” ou não) é uma mediação, porém a estética realista contemporânea reduz a capacidade do espectador de estabelecer relações, pois esgota a imagem a partir de códigos balizadores do olhar aonde predomina a indistinção entre o real e a ficção. Nesse cenário, como dissemos anteriormente, o discurso manifesto torna-se secundário. No fundo, se o protagonista é de “direita” ou de “esquerda”, pouco efeito faz na construção simbólica que o filme engendra, pois, em última instância, trata-se de um circuito que se retroalimenta de uma “verdade produzida” que, paradoxalmente, almeja a máxima transparência. 

As experimentações de linguagem, tanto na produção de imagens, quanto na narrativa, são alguns dos principais meios pelos quais o cinema (a Arte, de uma maneira geral) “pensa”. Infelizmente, tais experimentações são muitas vezes alvo de análises pejorativas, reduzindo suas aplicações a clichês tais como “filme para festival”, ou “filme para cativar intelectuais”. O apelo do efeito de real presente no cinema é, geralmente, o principal motor dessas críticas. Mais do que em qualquer outra forma de expressão artística, o cinema padece dessa necessidade constante de “inteligibilidade automática” que determinado arranjo de imagens em movimento proporciona. O filme de Moura, definitivamente, não se encontra no campo da experimentação cinematográfica, nem no que diz respeito a produção de imagens, nem na condução da narrativa, optando por um cinema palatável aos olhos do público acostumado aos produtos audiovisuais atuais (tanto na televisão, quanto na internet), restringindo o alcance da discussão política que o filme propõe.

Porém, como o título desse artigo sugere, o cinema tem (pelo menos) dois lados. Um ponto importante a se destacar é que, dentro da proposta assumida pelo diretor, qual seja, a de fazer um filme de ação do gênero policial, com apelo comercial, voltado, ao que tudo indica, para um público jovem, consumidor dos produtos audiovisuais contemporâneos e que, em sua grande maioria, desconhece o período histórico retratado, podemos afirmar que o filme é bem sucedido. No que concerne aos aspectos técnicos, tais como fotografia (que explora uma tonalidade com cores esmaecidas, propícia ao tema), som (que utiliza uma trilha musical que reforça o simbolismo de determinadas sequências), reconstituição de época e atuação do elenco, o filme alcança um nível bastante satisfatório. A montagem, muitas vezes recorrendo à dinâmica da montagem paralela, também cumpre satisfatoriamente o papel de imprimir um ritmo veemente a narrativa. Contudo, o aspecto que eu mais destacaria é que, frente ao momento político pelo qual passa o Brasil, Marighella tem uma forte conotação de provocação. Eu não sei dizer se esse foi um dos intuitos de Wagner Moura ao decidir filmar a história de Marighella, mas essa “provocação” chega em uma boa hora. Num país em que a extrema-direita está no poder, colocando em ação práticas retrógradas em termos culturais e de costumes, propondo um revisionismo disparatado da História e glorificando ditaduras e torturadores, colocar em evidência a vida e a luta de um personagem como Marighella traz um elemento altamente positivo para a obtusa discussão política vigente no Brasil. Marighella, mais do que um guerrilheiro, é um símbolo da luta permanente contra a tirania e seus adeptos, e trazer à tona sua história no momento atual é um movimento muito bem vindo. Apesar das ressalvas que eu tenho em relação ao filme enquanto obra cinematográfica (e são muitas), certamente estarei na poltrona de uma sala de cinema assim que o filme estrear, pois além da produção de pensamento implícita nos atos de fazer e assistir cinema, prestigiar certas obras do cinema nacional hoje em dia é, também, um ato político.