CRÔNICA

Por Guilherme Maia e Paolo D’Aprille

 

Volare oh oh, cantare…

Hermeto Pascoal, é o segundo Bruxo a aparecer no panorama da arte brasileira e mundial. O primeiro, lá no Cosme Velho, está presente há mais de um século nas centenas de digressões em páginas memoráveis, caminhando à luz de vela, desvendando mundos e fundos onde os iguais são opostos, concorrentes, pretendentes perdidos no enigma ambíguo das certezas nunca confirmadas, em olhos de ressaca das mulheres brasileiras personificadas na desconcertante presença de Capitu. Hermeto, tal qual o primeiro bruxo, vive no horror vacui do espaço e do tempo a ser imediatamente preenchido com qualquer coisa capaz de emitir som, não importa se instrumento musical ou chaleira, se apito de criança ou saxofone, se porco ou papagaio, não importa. Tudo é música, eu sou música, diz Hermeto.

Certa vez perguntaram a Marc Chagall o significado daquelas cabras voadoras, dos galos azuis, dos violinos flutuantes na imensidão onírica de suas telas. Respondeu como o Cândido voltairiano: as cabras, os galos, os violinos soltos estão lá porque havia espaço de sobra na tela e no céu, porque simplesmente cabiam.

Um belo dia alguém pediu a Erik Satie para escrever música mais agradável ao ouvido, quem sabe, música que descrevesse a natureza, como fazia magistralmente seu amigo Claude Debussy. Logo depois, o mestre entregou os celebérrimos Trois Morceaux em Forme de Poire, Três Peças em Forma de Pera, nas quais as notas na pauta eram desenhadas de fato como pequenas peras, frutinhas anárquicas na sisuda formalidade da cultura erudita francesa.

Esse humilde escrevinhador soube de fonte certa e fidedigna que o segundo bruxo entrou no estudo de gravação segurando um porco para ser usado como instrumento musical. E foi. Seus grunhidos estão lá, gravados na faixa título do disco. E quem tocou o porco-cantor foi ele mesmo, Hermeto, beliscando o bichinho no momento certo para que seu som estivesse no compasso, perfeitamente integrado à melodia. As cabras, os galos e os violinos flutuantes de Chagal, as peras revolucionárias de Satie e o porquinho cantor: é a natureza entrando pela porta da frente da arte, derrubando as convenções e as convicções, unificando os diferentes, diferenciando os iguais, porque com ele o Brasil cessa de existir e se torna o Eterno Universal para ser renovado a cada nota, a cada acorde impossível, a cada modulação harmônica entre o Forró e Miles Davis, entre o Festival de Montreux e Lagoa da Canoa no Município de Arapiraca, lá no sertão de Alagoas, onde nasceu. Sim, Hermeto Pascoal vem do Brasil profundo, da terra, das árvores, dos bichos, das festas populares, dos bailes arrasta-pés, das águas, dos mil sons da natureza criação divina. Hermeto Pascoal, gnomo de cabelo espantoso e barba bíblica, transforma o som em experiência cotidiana, em diversão, em grito de gol na final do campeonato, quando a voz do narrador e os teclados se fundem no delírio das gerais. Tiruliruli, Tiruliruli grita Osmar Santos: e que gooool. Logo depois, o papagaio alegre canta como porquinho feliz em um forró maluco.

 

 

Hermeto Pascoal olha para dentro de si e descobre que os raios verdes da lua esculpiram a impalpável matéria dos sonhos. Decreta o estado de felicidade permanente, celebra a festa pan-americana e, como em livro de José Saramago, permite ao continente brasileiro navegar pelos vastos oceanos de uma pracinha do interior, onde todos os músicos do mundo brigam e brincam para dominar o coreto.

 

 

E eu pedra, punho serrado me dissolvo em pó, Capitu me tira pra dançar, e lá, onde o azul é mais azul, entre cabras, galos, violinos e peras, porquinhos felizes e papagaios jazzistas, cantando, posso finalmente voar.

 

Paolo D’Aprille

 

HERMETO E SUA PÁSCOA

Hermeto incorpora o som que está difuso no ar, ele toma as forças naturais do espírito da música e verte sinfonias onde havia o silêncio. Da flauta ao acordeão, dos mais diversos meios de percussão ao piano: Hermeto e o som são uma entidade mágica.

Em 1976, o músico concluiu mais uma de suas obras-primas chamada Slave Mass, essa peça o lançou internacionalmente, levando-o a participar do Festival de Montreux e a tocar com Chick Corea e Stan Getz, dentre outros pilares da música de todos os tempos. Nessa “missa” ele expõe suas concepções musicais as mais vanguardas possíveis. Deflui de uma época onde a criação passou a ser constante no mercado fonográfico, pois havia público para o novo.

Sobressai um misto de elementos de sonoridade eletrônica, órgão e canais de sons sintetizados, com signos de brasilidade arraigada, coisas de sertão e de viola, como a faixa inicial o Tacho e Chorinho para Ele (chorinho é do meio urbano mas possui um ar de brejeiro).

A Missa dos Escravos, título que dá nome ao álbum, é cheia de dissonâncias e atonalidades e percussão de candomblé e, como estamos falando de Hermeto Pascoal, sons do fazer rural, uma vez que a escravidão sempre esteve ligada como mão de obra agrária; então é guincho de porco e risos frenéticos de uma pomba gira: símbolos da espiritualidade de matriz africana e dos afazeres de rotina do escravo.

A suavidade de Chorinho paras Ele eleva Hermeto ao patamar de um Benedito Lacerda, compôs uma obra icônica do chorinho, simplesmente porque ele faz o que quer e quando quer, é um mestre absoluto no seu metier.

E o que falar do duo que fez no mesmo festival de Montreux com a Elis Regina? Um campo de batalha onde os dois se digladiaram em suas visões musicais. Emitindo sons descompassados como um desafio de pistoleiros, ela com a costumeira firmeza frente a tudo e a todos e ele sendo o que ele sempre foi: audacioso.

Então, se o Brasil com suas contradições, suas violências e alienação de classe, possui brechas por onde surgem gênios como Hermeto Pascoal, como pode haver essa ascensão neofascista que vemos em nossos dias? Porque nossas genialidades foram muitas e em muitos campos de conhecimento, já era hora de promovermos uma evolução social e não esse retrocesso ao qual nos enfurnamos com essa praga incivilizatória.

Bom é acreditar que haverá uma Renascença brasileira em breve e que as forças da brutalidade vão ser suplantadas pela arte e a intelligentsia. O trabalho será árduo, posto que todo o sistema de alienação impingido à massa tem por objetivo manter o nível obsceno de concentração de renda e arcaísmos fundiários rurais e urbanos – imagine que ainda existem propriedades sucessivas de Sesmarias em pleno século XXI.

Não obstante isso, a força espiritual da Arte – e aí está Hermeto Pascoal – vai debelar esse neofascismo (que é o retrocesso do momento) e vai ascender os brasileiros ao nível de dignidade que é devido a todos, pois todos temos o direito de sermos felizes!

Exatamente por isso, por ser tão natural que gênios libertários sejam alçados a bandeiras de progresso, que a música de Hermeto Pascoal estará na frente do povo brasileiro no momento da tomada de consciência de sua dignidade; e, assim, todos nós vamos passar por esse Pessach para nos encontrarmos como nação.

A Páscoa do povo será a páscoa de Hermeto, o Pacoal!

 

Guilherme Maia