CRÔNICA

 

Por Marco Dacosta

 

Euclides guardava seu revólver quarenta e cinco com mistério. Em um canto do armário ficava seu uniforme e quepe, vestígios de sua presença na base militar de natal, ainda na segunda guerra. Numa outra parte, uma caixa com cadeado – sua lembranças dos campos de tiro.

Cresci com suas histórias das batalhas que nunca lutou, das trincheiras que imaginava e com algum ressentimento de missões de guerra que poderiam ser realizadas, mas não chegaram ao fim. Ele ficou meses na base americana em Natal (RN) aguardando o embarque para a Itália. Nunca chegou a colocar os pés por lá. A guerra foi vencida, mas ele jamais se recuperou da rejeição. Era o avô mais incrível que uma criança poderia ter e me abriu as portas para um mundo de imaginação e aventura. Infelizmente só descobri isso, tempos depois, quando ele era apenas uma fotografia da infância.

Seria ele um espião aposentado? Tudo indicaria que sim. Pelo menos era o que aprendi naquele verão, quando seu tiro no quintal da casa em Cascadura derrubou um satélite. Essa era minha versão preferida, que presenciei ou imaginei ao ver notícias estampadas nos jornais da época. O mundo não sabia ainda, mas ele , meu avô, havia destruído o Skylab, em julho de 1979.

Naquele tempo havia aprendido no manual de espionagem da Disney que espiões se comportavam com tons de mistério: tinham olhar distante, eram ágeis nas tarefas, não davam muitas explicações aos familiares. E eles estavam em todos os lugares. Na TV, o Agente 86 enfrentava russos e alemães, mas eu só tinha em mente que morava com um deles e que Euclides me treinaria para enfrentar russos e americanos. Ele dizia que nós Brasileiros dominaríamos o mundo e que eu seria um dos líderes desse novo tempo. Crianças são naturalmente curiosas pelo mundo e naqueles tempos de censura e pouco acesso à informação, tanto a guerra fria como as vozes que saíam do rádio de ondas curtas, com vozes em russo da rádio Moscou, ou como a voz da América, eram portais para um mundo de espionagem, disputas militares e segredos.

Durante algumas semanas em junho de 1979 o Jornal Nacional noticiou que um satélite da NASA – o Skylab – havia sofrido um dano e que estava à deriva. Todos os jornais e revistas especularam sobre o destino daquela bola de luz e fogo que cairia dos céus. Mas poucos sabiam que o responsável pelo dano no satélite era um militar aposentado que vivia no subúrbio do Rio. Esse era o nosso segredo. Em uma noite de festa junina, em comemoração ao São João, Euclides foi ao fundo do pomar, se perdeu entre goiabeiras. Eu o acompanhava pela janela, a distância, a seu pedido. A promessa era dar um tiro para o alto, com sua quarenta e cinco, para me provar que era arma de verdade e que ele sabia atirar. Minha avó bem que tentou contê-lo

você está louco ? – Essa arma não é pra isso ! – argumentou. Ela havia permitido que ele mantivesse o revólver com a condição de só usá-lo em caso de extrema necessidade, como a casa invadida ou em tentativa de roubo. Euclides gostava de “brincar” comigo simulando histórias de bandido e mocinho – manuais de espionagem e de policia. Naquela noite de junho quando ele atirou para o céu era mais uma tentativa de mostrar suas habilidades de guerra. Queria me mostrar o traçado de fogo que a arma deixa no ar. ‘É perigoso – dizia Iracema – vai que o menino pega essa arma e sai por aí atirando?

Para evitar acidentes, Euclides havia me explicado que só agentes secretos e treinados poderiam usar aquela arma prateada. Eu, só poderia atirar depois de ir a uma academia militar – o sonho para meu futuro – e assim herdaria sua “ poderosa” arma secreta. E lá estava eu na janela, numa noite de fogos, acompanhando com os olhos meu avô desaparecer no pomar, elevar a mão direita ao céu e disparar ao infinito. Seu braço não tremeu como eu imaginava, manteve firme e forte. Sua bala iluminou o céu, se juntou aos outros morteiros e clareou toda a rua.

No dia seguinte Euclides me mostrou o jornal e sorriu. Missão cumprida. Minha avó Iracema não percebeu mas ele bebia o café e me olhava com cumplicidade – somente eu sabia da sua missão. Nunca mais falamos sobre isso. Nem mesmo quando o visitei no hospital em seus últimos dias, alguns anos depois do Skylab haver se tornado uma lenda da década. Euclides partiu sem me dizer se era um espião e como aquela bala teria mudado o destino da guerra fria.

Quando fui visitar o museu da espionagem em Washington, era aniversário de quarenta anos da queda do Skylab me lembrei dos anos que passei achando que meu avô havia sido parte de todo aquele aparato militar. Já visitei vários museus inclusive o da antiga Alemanha oriental (DDR) e sigo fascinado por história de espiões. Como poderia esquecer aquela aventura e o mistério de ter um avô espião soviético? Qual criança esqueceria que um dia recebeu mensagens secretas e fórmulas fantásticas ?

O cartaz do Skylab na parede do Museu da capital americana seduz a todos que passam na exposição. O satélite flutua no espaço, entre estrelas. Hoje com a idade próxima a de Euclides naquela época entendo como foi bom pra minha imaginação ter desfrutado de uma infância com tamanha intensidade de histórias fantásticas. Euclides me deu o melhor presente que um pai ou avô pode dar aos seus filhos e netos que é a capacidade de mergulhar nas fantasias e criar histórias que nos alimentam a alma. É algo que jamais perderemos. Ele mesmo deve ter sido resultados dessa tradição de criar histórias e heróis.

Uma criança se aproxima – ambos olhamos as fotos de astronautas da NASA. Eu sorrio e digo a ela – meu avô derrubou um satélite com um tiro de revolver: “era um espião”

Os olhos do menino brilham – um espião de verdade ? Sim, respondi. E era tão profissional e dedicado que desapareceu sem deixar vestígios. Em arma, nem uniformes. Tudo desapareceu do seu armário. Eu bem que procurei – disse com naturalidade.

A criança que escuta a minha história toda e me surpreende com suas conclusões “É lógico – ele destruiu as evidências antes de ir para o Hospital. Mas não fique triste – diz o garoto americano – deve ser uma honra ter convivido com um espião de verdade.

Tem razão. Olho para o céu e agradeço a criança que está ao meu lado e a que está ainda dentro de mim, que vive cercada de boas memórias da infância e sabe que viveu em um mundo onde era possível ter heróis e acreditar nos mistérios da vida.