“Se existisse alguma moral para ser extraída da guerra da Crimeia que poderia se aplicar ao presente, seria essa: em uma guerra entre a Rússia e o Ocidente, são as potências que se mantêm afastadas os reais vencedores…” AJP Taylor, fevereiro 1951

Por James W. Carden

A situação na Crimeia voltou às notícias recentemente, mas se considerarmos a visão do Professor Taylor, talvez ela nunca tenha ido embora.

No mês passado, o navio de guerra britânico HMS Defender recebeu disparos de forças russas que patrulhavam o Mar Negro. O Defender estava lá (acompanhado, talvez não por coincidência, de um grupo da BBC) com o aparente propósito de apoiar a integridade territorial da Ucrânia.

Logo depois disso, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) realizou um grande exercício naval no Mar Negro, seguido por exercícios militares em conjunto com os EUA, Ucrânia, Polônia e Lituânia na Ucrânia Ocidental.

Considerando toda essa atividade, talvez seja uma boa hora para rever a história que corre o risco de ser perdida e que pode oferecer uma perspectiva diferente sobre o que vem acontecendo na região desde a queda do comunismo, há 30 anos.

Reconhecer que os motivos de Putin para anexar a Crimeia não são difíceis de entender não implica defender as ações da Rússia em 2014.

A mais recente fase de geopolítica acerca da situação da Crimeia começou em 2008, em uma Conferência da OTAN, em Bucareste, onde a maior aliança militar do mundo declarou que duas antigas repúblicas da União Soviética, Geórgia e Ucrânia, iriam se tornar membros da OTAN. Apenas meses depois, a resposta da Rússia veio na forma de invasão da Geórgia, em retaliação às provocações incrivelmente injustificadas do então presidente georgiano Mikhail Saakashvili.

Alguns anos depois, em março de 2014, na sequência dos violentos protestos de rua incitados por uma aliança entre os liberais pró-ocidentais da Ucrânia e os fascistas de extrema direita, três ex-presidentes ucranianos (Leonid Kravchuk, Leonid Kuchma e Viktor Yuschenko), emitiram um apelo para desfazer o Pacto de Kharkiv, um acordo que garantia à Rússia o direito de ancorar sua Frota do Mar Negro na Crimeia até 2042, em troca de preços reduzidos do gás natural russo.

Dado os claros planos da OTAN para a Ucrânia (o que o expansivo presidente da NED, National Endowment for Democracy, Carl Gershman, chamou de “o maior prêmio” da era pós-soviética), a ameaça que isso representava à segurança nacional da Rússia não pode ser facilmente ignorada.

O novo governo, liderado pelo primeiro-ministro, Arseniy Yatsenyuk, escolhido a dedo pelo Departamento de Estado, rapidamente criou ações para deslegitimar a língua russa tornando, aproximadamente, 30% dos cidadãos párias da sociedade ao lançar uma “operação antiterrorista” liderada pelo batalhão neonazista Azov, com alvo tanto em civis quanto em combatentes no leste do país, região predominantemente russófona.

Essas ações de Kiev desafiaram diretamente a política de Putin de proteção a minorias russas no exterior, então, iniciou-se uma guerra que já matou cerca de 13,000 pessoas e que resultou no deslocamento de mais de um milhão de indivíduos.

Apesar de tanto debate sobre a Crimeia, uma voz raramente mencionada no Ocidente é a de Alexander Solzhenitsyn, laureado com um Nobel de literatura.

Lembrem-se de que durante a primeira fase da Guerra Fria, Solzhenitsyn era um queridinho dos radicais americanos, como o senador de Washington, Henry ‘Scoop’ Jackson, e o fundador do movimento conservador americano pós-guerra, William F. Buckley.

Hoje, Solzhenitsyn é considerado um exemplar dos valores ocidentais entre escritores populares conservadores, e também entre alguns apparatchiks (funcionários do governo do Partido Comunista na antiga União Soviética) neoconservadores

Embora não seja citado com frequência, Solzhenitsyn escreveu sobre as relações da Rússia e Crimeia com a Ucrânia pós-soviética em um pequeno, mas poderoso, livro publicado em 1994, chamado A Questão Russa.

Nele, Solzhenitsyn descreve, com um desdém pouco velado, como o presidente russo Boris Yeltsin estragou a ruptura do tratado da União em uma reunião clandestina com os presidentes em exercício das Repúblicas Socialistas Soviéticas da Ucrânia e da Bielorrússia, em uma pequena cidade florestal fora de Minsk, em dezembro de 1991. Foi lá, de acordo com notícias veiculadas na época, escreve Solzhenitsyn, que o líder ucraniano…

“…Kravchuk, prometeu aos seus colegas […] uma união real e indissolúvel, fronteiras ‘invisíveis’, um único exército e única moeda. Mas tudo isso se revelou uma mentira, nada do tipo nunca foi criado e, algum tempo depois, Kravchuk declarou abertamente: nós devemos acabar com o mito das fronteiras ´invisíveis´”.

Enquanto expressava “os melhores desejos para um bom desenvolvimento da cultura e da singularidade ucraniana”, Solzhenitsyn realçou a ironia de ver…

“…nacionalistas ucranianos que, no passado, haviam sido ferrenhos opositores do comunismo e, no geral, que pareciam amaldiçoar Lenin, serem profundamente tentados pela maçã envenenada do revolucionário; ansiosamente aceitando a falácia da fronteira leninista da Ucrânia (incluindo até o dote da Crimeia pelo tirano mesquinho Khrushchev)”.

Como Solzhenitsyn deixa claro, os EUA vêm tentando levar, não apenas a Crimeia, mas a cidade portenha naval russa Sevastopol, para a esfera de influência ocidental nos últimos 30 anos. Solzhenitsyn destaca que o embaixador americano na Ucrânia, um homem de etnia ucraniana chamado Roman Popadiuck…

“…teve o descaramento de declarar que Sevastopol pertencia, por direito, à Ucrânia. Com base em que conhecimento histórico, apoiando-se em quais fundamentos jurídicos ele pronunciou essas declarações decoradas? — ele não soube esclarecer. Mas por que ele deveria, quando o Departamento de Estado apoiou sua opinião sem demora? Isso, em relação à Sevastopol, que nem mesmo o lunático do Khrushchev considerava ‘ceder’ à Ucrânia, pois estava separada da Crimeia, por ser uma cidade sob a administração direta de Moscou. (Alguém pode até perguntar: que interesse o Departamento de Estado teria em sequer comentar sobre Sevastopol?)”.

Tudo isso apenas para indicar que os problemas acerca da situação da Crimeia são muito mais complicados do que geralmente apresentados na imprensa americana. O melhor plano de ação em relação à Crimeia pode muito bem ser aquele sugerido por AJP Taylor uns 70 anos atrás.

Esse artigo foi produzido em uma parceria entre ACURA e Globetrotter.


James W. Carden é um ex-conselheiro do Departamento de Estado dos EUA e um contribuidor frequente do The American Conservative e The Quincy Institute’s Responsible Statecraft.

Traduzido do inglês por Ana Carolina Carvalho / Revisado por Graça Pinheiro