OLHARES
Por Clementino Jr.
“A origem da mentira está na imagem idealizada que temos de nós próprios e que desejamos impor aos outros.”
Anais Nin
Três imagens marcaram a semana do segundo Dias das Mães pandêmico. Não gosto de escrever sobre acontecimentos pontuais, pois os julgamentos e o momento do evento podem ser igualmente pontuais. Quando falo de imagens, minha praia é a imagem em movimento e sua repercussão com suas repetições e difusões, capazes de tornar uma mentira verdade ou de (des)construir uma ideia de tantas vezes que se repete em determinados assuntos.
“Se uma imagem vale mais do que mil palavras, então diga isto com uma imagem.”
Millôr Fernandes
Primeira imagem: Le Parkour
A cobertura jornalística de operações policiais, desde os anos 1980, tem um fetiche por registrar o flagrante de jovens pretos correndo e pulando pelos tetos de barracos e casas em favelas. De alguma maneira, essas imagens atraem a atenção de diversos públicos, independente da leitura que se faça sobre o desejo de que as autoridades executem os “suspeitos”. Não entrando no mérito de quem é ou não criminoso, ou se deve ou não ter o seu “CPF cancelado”, como se diz na gíria miliciana contemporânea, mas a imagem dos jovens pretos com seus fuzis, correndo e pulando pelas lajes, difere do que o noticiário apresenta, apesar das armas em punho, de quem se preparou para a guerra, para encarar as “forças de segurança” em uma das poucas favelas onde o tráfico ainda não permitiu a ocupação de milícia. O resultado dessa operação já se sabe antes de acontecer: não há sobreviventes e os soldados abatidos serão substituídos por soldados ainda mais jovens, de ambos os lados. Mais de 20 mortos, pelo menos 20 mães chorando, mas que preferiam vê-los presos a não ter o direito de ver seus corpos.
Segunda imagem: “Colagem Digital”
Muitas imagens fortes da população lavando aos baldes de água — com geosmina — as ruas e casas cheias de sangue remetem à enxurrada de sangue de O Iluminado, de Kubrick. Também remetem à “homenagem” feita ao filme por Babenco, em Carandiru, que, no caso especial dessa chacina, se enquadra melhor para o que alguns isentos veem como poesia. O grito de uma mãe branca da favela na manifestação do dia seguinte é substituído por imagens em montagem bem feita, mas ainda uma montagem, quase que quadro a quadro, dessa mãe que, com outra senhora mais velha, dança com os braços levantados, carregando fuzis. Então vem alguém e lhe coloca um colete preto, como os à prova de bala, diante das risadas ao fundo de jovens pretos que estão na área da casa. É nítido, quando pausamos em alguns momentos, que o foco é diferente entre a arma e o braço que a carrega, enquanto a mão parece desenhada num tablet, como uma imagem fake feita de um ex-ministro do STF rasgando a constituição e que foi muito compartilhada nas redes quando este senhor incomodou um certo grupo, ainda não tão organizado como em 2018. E algo novo: a mãe branca que perdeu o filho nem é a mesma pessoa que aparece na montagem… “democracia no exercício do olhar”, que torna iguais duas mulheres brancas.
Terceira imagem: “álibi”
Um jornalista, ao defender que “não somos racistas”, poderia muito bem ilustrar a construção da tragédia, ao trazer uma criança preta chorando pela morte do parente branco, única vítima que estaria “do lado certo da narrativa”, sendo amparado por colegas e familiares brancos. Essa vítima tem CPF, tem identidade, tem histórico apresentado ao público de imediato e se torna a justificativa para o desandar da carruagem comandada pelas forças de segurança que, em um tsunami de violência, permitiram que as imagens 1 e 2 desse texto ficassem firmes e corressem pelas TVs e redes sociais, públicas e privadas, da população. Elas estão de acordo com a repressão ou de acordo com a vida de pessoas que, mesmo que envolvidas com o crime, não têm os mesmos direitos de condomínios do outro lado da cidade, mais à beira da praia que da linha do trem. A criança preta, triste pelo familiar querido que perdeu e cuja imagem foi explorada pelo noticiário logo nas primeiras horas (e poupadas depois que caiu a ficha do uso e exposição de menores), mostra para o público em geral de que lado e qual o comportamento esperado de jovens pretos que não pretendem ter o CPF cancelado. Só existe, aos olhos da sociedade racista e desde as guerras no período do império, uma oportunidade para que o preto consiga a sua alforria: a farda, estando do “lado certo” das armas que atiram e matam dezenas em uma guerra. O parente branco representa, para reforço desta última imagem, o lado certo da narrativa para o menino preto, mesmo que quem mais morra de farda nessa guerra, também sejam os pretos “do lado certo”.
Em um momento em que a maior preocupação do “povo de bem” seriam os efeitos colaterais da vacina que tanto negam, negam-se os efeitos colaterais de uma guerra ao tráfico de drogas, em um contexto onde as drogas continuarão a existir, a opressão armada aos moradores continuará a existir, mas, segundo desejo de muitos, sob “nova administração” ou, pelo menos, sob uma nova imagem de quem carrega os fuzis nas favelas.
Iconoclasta é aquele que destrói imagens, uma palavra que surge de um movimento no século VIII, quando se tenta purificar o cristianismo que, em uma primeira fase, pregava com o uso de imagens sacras, destruindo essas imagens. Isso porque, dentro da mesma fé, não havia dentre os que detinham as decisões e o poder a mesma visão da importância delas. Algumas linhas das novas religiões cristãs usam e abusam da destruição dos símbolos, tanto cristãos, mas, principalmente, de outras religiões que não as suas, como forma de demonstrar e impor a sua presença. No Rio, essa iconoclastia se faz presente com o tráfico e as milícias, em nome de um Deus distante do Jesus histórico. Mas os rastros de sangue deixados nos becos, vielas, quartos de crianças — que ao contrário do jovem preto, não estão “no lado certo” e nem vão querer dormir mais no quarto onde testemunharam uma execução — são tintas muito fortes num quadro pintado sem cuidado por pessoas sem talento, mas que são aplaudidas por poucos apreciadores que preferem olhar a tela sem sequer pensar em conhecer a paisagem retratada.
Pelo menos 20 mães não tiveram presentes, dos dois lados da bala, e muitas outras terão ausências em suas casas até a próxima operação.