ENSAIO
por Trudi Richards
Minha mãe teve Alzheimer. Todos nós, minha mãe e toda a sua família e principalmente meu pai, que se dedicou em tomar conta dos últimos anos da vida dela, sofremos profundamente com isso. Entretanto, eu acredito que o que aconteceu com ela também foi uma dádiva, e para mim, reconhecer isso realmente foi de suma importância. Porque isso me ajudou a estar em paz com este processo – o que, por sua vez, me ajudou a ajudar minha mãe a estar em paz.
Eu: “De onde viemos?”
Minha mãe: “Eu não sei.”
Eu: “Então, para onde vamos?”
Minha mãe, com grande alegria: “Ah, eu sei para onde estamos indo, contudo, eu não me atreveria colocar um nome nisso. Porém, existem diversos lugares onde podemos parar ao longo do caminho! E se escrevermos um livro juntos, ficaríamos extasiados e esqueceremos de morrer!”
Quando minha mãe estava viva, encontrávamos meus pais para o almoço de domingo, assim como eles faziam com seus pais. Meus pais eram de Nebraska, e essa era uma tradição sagrada.
Aos domingos, tínhamos uma grande reunião: minha irmã e sua família, meu irmão e a família dele, eu e minha família e nossos pais. Eram mais ou menos, sete crianças, oito adultos, e um grande espírito de prazer barulhento.
Entretanto, minha mãe havia perdido a capacidade de acompanhar e entrar na conversa. Antes, uma mulher dinâmica, líder da matilha, agora se sentia perdida e isolada em um grupo, a menos que alguém estivesse dando atenção direta para ela. Eu sabia disso, mas naquele domingo, quando todos estávamos juntos, eu realmente queria estar com os meus irmãos e todos os outros. Eu queria uma pausa daquela constante vigilância em saber se minha mãe estava bem. Estávamos lavando as louças, rindo e vendo as bobeiras loucas das crianças, e esquecendo da minha mãe.
Eu estava compartilhando histórias com meu irmão e mastigando alguns restos de comida, quando meu pai me puxou de lado de forma contida, porém desesperado.
“Vem aqui fora e tenta convencer ela a não ir embora?”
“Tá bom.” Eu o segui até a garagem. Minha mãe estava sentada no assento do motorista. A porta da garagem, atrás dela, estava aberta.
“Venha Betty, entre aqui.” A Betty, uma Golden Retriever gorda, sentou ali, confusa. “Estamos indo embora daqui”.
Minha mãe não dirigia há três anos.
“Oi!” Eu entrei no meu papel. “Aonde você está indo?”
“Vamos para casa.” Ela estava com a face do meu avô, a face da era da depressão com um ressentimento amargo.
“Não vá ainda, eu quero passar mais tempo com você! Vamos dar uma volta.” Eu sentia como se ela pudesse ler através da minha artimanha. Eu estava suplicando, mas não sabia mais o que fazer. Me abaixei para olhar em seus olhos e peguei sua mão. Ela continuou sentada, determinada, mas pude sentir uma brecha.
“Então tá”, ela murmurou. Eu a puxei gentilmente e ela começou a sair do carro. Para dar a independência que eu podia lhe dar, a soltei e andei para fora da garagem, sob a luz do sol de fim de tarde. Ela começou a me seguir, mas no último minuto, percebendo a cachorra e a porta do carro aberta, disse: “Betty! Entre no carro. Nós estamos indo! Não vamos ficar aqui com essas pessoas.” Meu pai, sem saber o que fazer, seguindo todos os nossos movimentos, estava ali, titubeando em silêncio no perímetro.
“Vamos!” Eu implorei, “Vamos dar uma volta, por favor!” Eu sabia que essa súplica desesperada era um erro, mas eu não conseguia pensar em mais nada. Esquecendo que não tinha chave no carro, pensei que ela realmente iria entrar dentro do carro e sair dirigindo. Busquei pela sua mão relutante novamente, “vamos, venha comigo!”. Ela me empurrou fracamente. “Ah, pra quê?! Me deixa!” Mas então, de forma sutil algo mudou e ela me seguiu. Eu fiquei em pé, atrás do carro e me inclinei sobre ele, olhando para as colinas, como se estivesse admirando ao entardecer. “Olha como está lindo!” Ela ficou em pé ao meu lado, então coloquei meu braço sobre seus ombros, me aproximando dela. Toda dura e sem reação, ela me olhou de relance sarcasticamente.
“O que aconteceu?” Eu perguntei a ela, “O que foi?”
“Aqui é um péssimo lugar.”
“Eu acho aqui maravilhoso. Qual o problema?”
“Todos se odeiam.”
“Eu acho que é completamente o contrário, todos estamos tendo um momento gostoso.” Eu me senti estúpida. Eu sabia que essa não era a coisa certa a se dizer, mas parecia que eu não conseguia achar algo para tirá-la desse estado. Eu sabia que ela se sentia deslocada. Todas as suas inseguranças não resolvidas ao longo de sua vida, as quais ela sempre repelia com razão e determinação, estavam agora tomando conta dela.
Eu mantive meu braço em seus ombros, com ou sem reação. “Mãe, você poderia tocar um pouco de música, para mim?” Ela ainda tocava piano, uma habilidade que extraordinariamente se manteve intacta; na verdade, apesar de sua técnica falhar às vezes, parecia que ela se tornava cada vez mais emocionalmente expressiva. “Ah” ela se vira para mim, e uma nova luz se acende em seus olhos, “Tá bom!”.
Alívio. Nós entramos, e fomos para o grande piano na sala de estar. Os outros, provavelmente notando o que estava acontecendo, tinham ido para algum outro lugar. Eu me sentei ao seu lado no banco, me aconchegando nela. Ela posicionou suas mãos enrugadas sobre as teclas. Brahms. Começou a sair dela, e lágrimas começaram a sair de mim. Eu não precisei escondê-las dela. Ela não tinha críticas. Nós mergulhamos em um banho de pura, e poderosa, energia.
Meu pai estava vendo e ouvindo, nas sombras. Depois da primeira peça, ele timidamente nos abordou: “tem espaço pra mim?” Minha mãe olhou para ele com afeição: “Claro!”. Deslizamos sobre o pequeno banco e ele se sentou na ponta, ao meu lado. Coloquei meus braços sobre os dois, e os abracei bem forte. Eu os amava tanto. Minha mãe se virou para nós com alegria, “Isso não é maravilhoso? A vida, não é maravilhosa?”.
Ela tocou e tocou. Uma peça se tornava outra. Todos os elementos de seu antigo repertório, desde clássicos, ragtime, jazz e até mesmo suas improvisações apaixonantes, interligadas e misturadas, criando uma maravilhosa evolução. Ela tocou uma música da época de seu cortejo, “Venha, venha, eu amo você, apenas” e meu pai se juntou a ela, em seu puro e velho tenor. As lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu não as escondi, nem mesmo de meu pai. Nos sentamos em uma preciosa unidade. Algo que nunca fomos capazes de ter quando minha mãe ainda era “racional”, pois era protegido, como todos nós, pelas suas armaduras da razão. Mas agora, despida dessa armadura, ela estava liberta, e isso também nos libertou de sua prisão racional.
Finalmente, depois de 15 ou 20 minutos, ela tocou um último acorde, e com reverência, continuou sentada de cabeça abaixada, em silêncio. Então, sorrindo e em paz, ela se vira novamente para olhar dentro de nossos olhos. A luz de sua alegria me cegou. “Obrigada!” ela disse. “Não somos sortudos?!”
Sobre a escritora:
Trudi Lee Richards
Escritora solista, poeta e cantora-compositora, curadora da Winged Lion Press Cooperative; Tradutora de Inglês-Espanhol. Trabalhos publicados incluem, The Confessions of Olivia; On Wings of Intent, a biography of Silo; Soft Brushes with Death, a Jorge Espinet Primer; Fish Scribbles; e Experiences on the Threshold. Projetos em andamento incluem gravações de áudios e possivelmente um podcast sobre seus trabalhos literários e musicais. Explorações publicadas no passado pré-internet incluem Human Future, uma revisão independente publicada entre 1989-96, em São Francisco, CA; e La Mamelle, uma publicação de artes de São Francisco, dos anos 70, da qual foi cofundadora. Graduada pela Universidade de Stanford, mãe de cinco filhos/enteados e cinco neteados. Vive atualmente em Portland, Oregon, onde é membro da Portland Community of Silo’s Message.
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Traduzido do inglês para o português por Kioshy Kinoshita / Revisado por Larissa Dufner