Eu já sabia, eu disse, era óbvio, eu estava certo. Retomo o conceito já expresso em meu artigo intitulado com a pergunta leninista “Que fazer?”: na América Latina, as manifestações populares só têm êxito se, além de ter maciça adesão, duram dias ou semanas inteiras e, principalmente, se forem violentas: dezenas de mortos e centenas de feridos. O caso recente do Chile nos ensina como é alto o preço para chegar à consulta popular e formar uma assembleia constituinte. Se realmente conseguirá mudar o sistema político e econômico que, das profundezas dos ferozes anos setenta, tornou-se a vanguarda da ortodoxia “thatcherista”, com os economistas criminosos da Escola de Chicago babando sentenças neoliberais nas costas do povo, é muito difícil de prever.
O sistema hegemônico e sua galáxia de dominação, em que a repressão já não requer mais a intervenção armada, mas faz uso das técnicas de manipulação da dinâmica do consenso, permite que as decisões tomadas, tanto localmente como na esfera macropolítica, apareçam como naturais, de senso comum, de modo a serem aceitas como inelutáveis e definitivas pelos setores produtivos, pelo mundo empresarial (cúmplice e ator principal), pela imprensa, pelas instituições públicas, pelos indivíduos, por cada um de nós. A dimensão hegemônica na qual a classe dominante chafurda é composta unicamente por sua capacidade de generalizar seus interesses e sua visão de mundo, transformando-os em necessidades coletivas, em desejos comuns naturais, em normalidade cotidiana, em valores compartilhados. É por isso que eles sempre ganham, mesmo perdendo, eles continuam ganhando.
O sistema democrático representativo, longe de ser um instrumento de participação incisiva, é parte integrante do processo ampliado de dominação que também prevê a existência em seu bojo de bolhas de dissenso “pacíficas” e “não violentas”, como uma espécie de folclore colorido e festivo, entretanto absolutamente incapaz de desestabilizar seus fundamentos.
É isso aí, gente, nós também fazemos parte daquele sistema, que muitos estudiosos chamam de “estilo de vida imperial”. Com nossas bandeiras, com nossa necessidade fisiológica de descer às ruas para gritar a raiva contra um governo genocida, não conseguimos nada; ao contrário, nos expusemos ao contágio do vírus sempre à espreita de um vacilo e, com nossa inconsistência, demos ao bolsonarismo todas as razões para nos atacar também nessa frente: por uma única manifestação em um belo dia de sol, destruímos a sacrossanta exigência de reivindicar a necessidade de distanciamento social e do lockdown, que na ausência de um plano de vacinação em massa, são as únicas medidas capazes de deter o massacre que em algumas semanas vai contabilizar meio milhão de mortos.
Um general do exército se esbaldando no palanque ao lado do presidente da república seria por si só uma visão obscena. Se este general, sob o disfarce de Ministro da Saúde comandou o genocídio através do boicote efetivo de todas as medidas preventivas, e em obediência à ordem direta do presidente, cancelou a compra de 150 milhões de doses de vacina, sua aparição no palanque da manifestação proto-fascista não só é obscenamente podre, mas também ofensiva, deletéria. Se então, como declarado por seus próprios coleguinhas do Estado Maior, for um ato contrário às regras da disciplina militar – “a participação em qualquer ato político é estritamente proibida” – sua presença ao lado do presidente é também uma infração passível de punição. Mas o alto comando, em deferência aos desejos de Bolsonaro, perdoa o general, não encontrando em seu gesto nenhuma falta digna de repreensão.
No dia seguinte às enormes manifestações (pa-cí-fi-cas-de-mo-crá-ti-cas-não-vio-len-tas…) que ocorreram em todo o país, o exército perdoou um ato de insubordinação de um general que participou a uma manifestação política, na qual, pela enésima vez, invocava-se o advento do golpe de estado. Alguns dias depois, o próprio presidente nomeou aquele general como diretor da Secretaria Especial de Estudos Estratégicos, cargo esse subordinado diretamente a ele, o presidente da república. E, como se não bastasse, o grande Fidaputa também disse que nas manifestações pacíficas-democráticas-não-violentas havia pouca gente porque não tinha droga para todo mundo.
O escárnio, as ameaças, continuam. Como sempre.
E agora, o que fazemos? Vamos continuar assistindo ao avanço do autoritarismo, às dez mil mortes semanais sacrificadas no altar da vontade assassina dessas pessoas? Vamos organizar uma nova manifestação com cartazes coloridos e simpáticos dizeres? Vamos continuar a escrever nossos artigos indignados? Por que desistimos da luta tão facilmente? Por que não fomos capazes de organizar a resistência nos locais de trabalho? Por que não pensamos em protestos populares através de boicotes e sabotagem da produção? Por que, com nossa apatia, continuamos a colaborar com o mundo corporativo que nos mata com seu expediente massacrante, que nos obriga a aglomerar como animais em ônibus e metrôs? Por que aceitamos o modo de vida e morte que nos é imposto? Alguém aí pode me responder?