ENTREVISTA
Qual é o fio condutor de nossas vidas? E a quem interessa dizer que o oposto da vida é a morte? Dos recantos do Estácio às travessas do Pelourinho, do Brasil a Nairóbi e além, Necropoéticas e outras histórias propõe investigar o desencanto da morte para reencantar a vida, enlaçando múltiplas narrativas do povo negro em diáspora. São treze contos que conversam entre si e nos convidam a testemunhar experiências distantes do luto ocidentalizado, recriando linguagens e temporalidades e simbologias a cada história.
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Confira abaixo e na íntegra a entrevista com o autor Marco Aurélio da Conceição Correa.
PRESSENZA: Como surgiu a ideia de escrever Necropoéticas e outras histórias?
Marco Aurélio: Necropoéticas veio de um desejo de ser ouvido. Antes da faísca que despertou o desejo de escrever literatura, me sentia frustrado com as limitações da escrita acadêmica, principal meio de expressão da minha escrita na época. Como todo bom pesquisador que se debruça com afinco nos estudos das relações raciais no Brasil grande parte do meu trabalho era tecer críticas ao genocídio, subjetivo e objetivo, que pessoas negras vivem historicamente. No momento vivia-se um fervor com a popularização do conceito de necropolítica do filósofo camaronês Achille Mbembe, comecei a pensar como a academia pode esvaziar de sentidos conceitos teóricos que são de nosso conhecimento cotidiano. Pessoas negras vivem a necropolítica na pele dia após dia muito antes do boom do conceito de Mbembe. Então decidi começar a experimentar outras formas de linguagens que pudessem ser críticas e científicas ao mesmo tempo que sensibilizassem em prol de uma mudança de sentido de mundo. A literatura me parece ser esse lugar de lidar com coisas sérias, sem perder a leveza da vida. E necropoéticas, como o poeta Davi Nunes versa, é exatamente essa possibilidade de criação mesmo num cenário nefasto.
PRESSENZA: Como você vê a chegada de Necropoéticas ao mercado em momento tão abertamente marcado (e amplamente noticiado) de genocídio do povo negro em terras brasileiras?
Marco Aurélio: Não é a arte sozinha que resolverá os graves problemas que vivemos. Mas acho que ela é um dos elementos que podem reverberar num processo de mudança. Quando comecei a escrever Necropoéticas não imaginava que em menos de dois anos perderíamos mais de meio milhão de brasileiros. A literatura, junto com diversas outras iniciativas, pode compor uma frente ampla num processo de reviravolta para nós brasileiros, sobretudo as pessoas negras. O genocídio é histórico, mas acredito que agora ele deixa de ser velado, seja isso pro bem ou para o mal. Necropoéticas então vem em comunhão com diversas vozes que querem sair da posição da mera reação e começar a criar os próprios caminhos. Sabemos que a morte é uma vizinha constante nas favelas e periferias brasileiras, mas como podemos elaborar formas de dribla-la? Principalmente, desviando dos romantismos que envolve a superação nesses cenários críticos. Nos 13 contos do livro apresento diversas relações com a morte como uma personagem, essas fabulações narrativas podem tanto nos reconectar com nossas tradições esquecidas, quanto nos recordar de táticas contemporâneas. Acredito que todas elas são um afago para uma realidade tão afetada pela escassez em seus mais variados sentidos.
PRESSENZA: Este não é seu primeiro livro, certo? Conta mais sobre Cinemas Afro-atlânticos e sua relação com o tema.
Marco Aurélio: Cinemas Afro-atlânticos é fruto de anos de pesquisa e vivência com os cinemas negros. Desde o começo de minha graduação em pedagogia vivi os cinemas negros frequentando cineclubes, eventos, mostras, sets e formações. No caminho da iniciação científica comecei a cruzar a pesquisa em educação com o fazer dos cinemas negros. Percebi que apesar da emergente cena brasileira, existe por toda diáspora um histórico de produções cinematográficas feitas por pessoas negras, que vem lutando contra o cenário elitista e estereotipado do grande cinema. Por isso grafo cinemas negros no plural, pois de Burkina Faso ao Haiti temos negras e negros fazendo um cinema crítico e criativo, com suas especificidades próprias. No livro navego por estas cinematografias e encontro confluências com uma prática pedagógica antirracista e contracolonial dentro das perspectivas da lei 10639/03. O conceito de diáspora vai além de sua dimensão geográfica, as diásporas são outras formas de sentir, viver e organizar o mundo distante da racionalidade ocidental. Necropoéticas se encontra com Cinemas Afro-atlânticos quando tendo a abraçar a diáspora como uma grande comunidade atlântica que subverte as estruturas e amarras coloniais da branquitude.
PRESSSENZA: O que significa para o contexto de Necropoéticas a imagem que ilustra a capa do livro?
Marco Aurélio: Os traços da capa do livro são os veves, símbolos usados para representar cada um dos loás – as divindades do vodu haitiano. Similares aos pontos riscados de nossas umbandas e macumbas, os veves são usados em oferendas, celebrações e rituais específicos. O veve da capa representa Kalfou, a encruzilhada viva, na corruptela do Carrefour francês no criolo haitiano. Kalfou é um dos mais complexos loás, assim como Exu e Legba, porque ele representa a própria imprevisibilidade das encruzilhadas. Pesquisando sobre o vodu haitiano para compor o conto Terça gorda de carnaval encontrei muitas similaridades, e diferenças também, entre as nossas religiões de matriz africana. Afirmando assim como a diáspora se configura como partilha de maneiras de compreender o mundo a partir da mãe África. A princípio quase optei pelo veve do Barão Samedi, uma das personagens do conto, mas senti que a encruzilhada de certa forma também era uma constante no livro. Acredito que a necropoética – criação na adversatividade da morte – tem tudo a ver com as possibilidades das encruzilhadas. Ao mesmo tempo que ela pode ser perdição, as encruzilhadas podem ser oportunidades de encontros em novos caminhos.
PRESSENZA: Que trecho de Necropoéticas você gostaria de deixar aqui para os nossos leitores?
Marco Aurélio: “Por isso, foi grande a comoção da comunidade pela partida. Seu velório conseguiu juntar o mais variado tipo de gente: a velha guarda que embalava o samba, as evangélicas que oravam a falecida, o pessoal da macumba com os atabaques, os pinguços que se juntavam pra beber a morta, os jovens que se juntavam por qualquer bagunça e as crianças que sempre estavam atrás de comida. A única exigência da senhora era que queria ser enterrada como os grandes sambistas, com um grande gurufim. Não queria saber de choro, nem vela, mas sim de festa e comemoração. E a sua família estendida fez questão de respeitar o desejo.” (Trecho do conto Gurufim da Dona Nonô)
Marco Aurélio da Conceição Correa (@marcorelio__ ) é professor da rede municipal do Rio de Janeiro (SME-RJ), mestrando em Educação no programa de Pós Graduação em Educação da UERJ (ProPed-UERJ), pós-graduando em ensino de história da África (PROPGPEC-CP2). Pedagogo, educador, escritor, pesquisa sobre as confluências entre os cinemas negros, a educação e as relações raciais. Publica textos em periódicos acadêmicos, revistas de comunicação e coletâneas literárias. É autor do livro “Cinemas afro-atlânticos” (Editora Ape’ku, 2020).
Somos uma equipe de sete pessoas, que trabalham com autores brasileires, cujas propostas literárias fujam do que se entende por literatura comercial. Desde seu lançamento, na Casa Fantástica (FLIP 2018), nossa curadoria se dedica a ficção, não ficção, poesia e dramaturgia criada a partir dos lugares de fala da negritude, de LGBTQIA+, da divergência física, da neurodivergência e do ativismo. São outras histórias – apagadas, mas tão presentes -, livres da imposição do cânone, em que palavras vêm cruas, papos são retos, vozes permanecem vivas e todo ato é resistência cênica. https://www.instagram.com/editora_nua/