O burro estava preso, como sempre, no fundo do quintal. Tinha dias que nem solto era. Ficava só na água e no capim. A carroça içada pelo peso da caçamba não era usada para levar nada pra ninguém. O tempo era bicudo. Faltava trabalho até pra ele. O burro olhava ao redor e nem seu dono via. Era uma vida medíocre à espera da morte que demoraria a chegar. Vida tão sem objetivo que nem o vento soprava quente ou frio naquele vale.
Mas ao longe vinha Zé Bezerra e Capitão. Dois cabras cheio de ideias malditas na mente desocupada. Sempre tinham ideias de jerico, diz o povo do lugar. Os dois queriam vida boa sem suar a gola da camisa. Faziam os outros de trouxa sem pestanejar. Foi quando Zé olhou pro burro, ali sem serventia e cochichou com Capitão: “vamos pegar esse burro, com carroça e tudo e vamos pra vila bagunçar?” Capitão, uma Maria vai com as outras, não tinha capacidade pra pensar, então disse: “vamos!”
Zé montou a carroça, mandou o amigo subir, e ordenou o burro a galopar. Capitão apertou o chapéu na cabeça, agachou na carroça e nada do burro desembestar. Zé, que ficava irritado com qualquer coisa, mascou um talo capim que sempre levava na boca e danou a ordenar o burro aos berros de “simbora bicho ruim, anda catiço, lamparão dos inferno… “ O burro impávido não movia uma pata, parecia esperar o momento certo.
Suando feito bode velho e já ouvindo gracinha de Capitão, Zé Bezerra desceu da carroça pra puxar o burro pelo cabresto. O burro empacado relinchava e nada. Uma raiva foi tomando Zé Bezerra, enquanto Capitão ria e zombava do amigo. Pra atiçar ainda mais, ele dizia que o burro era mais inteligente que Zé. Pior que parecia que o bicho sabia o que estava fazendo. Sair com aqueles dois não poderia ser pra coisa boa.
O sol já ia no meio céu e a vila ficava a algumas léguas de distância.
Era preciso sair cedo, pra não voltar na escuridão, correndo o risco de dar de cara com uma onça parda faminta pela estrada vicinal.
Foi quando capitão resolveu descer da carroça, entrar no mato e sair de lá com uma vara de marmelo, antes mesmo de Zé perguntar o que pretendia fazer com aquilo, Capitão foi no traseiro do burro e deu uma lambada com a vara no seu lombo. O bicho de um pulo, seguido de um pinote, passando em cima de Zé Bezerra. O desastre foi grande. O burro só parou no rumo da cerca. Capitão foi atropelado pela roda de ferro da carroça e ficou manco. A roda lhe quebrou o joelho esquerdo. Zé Bezerra teve o apelido alterado pra “ovo choco”, por causa do pisão do animal nas suas partes baixas. Os dois não se falam mais. Dizem que quando se encontram até atravessam a estrada pra não cruzarem um com o outro. Um põe a culpa no outro pelo ocorrido e guardam mágoa pelo resultado daquela tarde trágica quando os dois estavam com a cabeça desocupada de boas intenções. Já o burro continua tendo uma vida mansa naquele lugar que fica depois da vila próximo do olho d’água onde nasce o rio que dá na única cachoeira do lugar. O burro ganhou fama naquelas paragens, todos respeitam seu sossego, muito mais por medo de sua reação.
Seu dono até aposentou a carroça. Preferiu deixar o bicho sossegado.
Sabe como é: não se mexe com quem está quieto e, pelo jeito, não se cutuca burro e onça com vara curta.
Essa lição todo povo da roça sabe de cor. Mas tem gente que só acredita depois que o pior já alterou a sua vida.