Por Paolo D’Aprile e Guilherme Maia
“Eu sou um artista antifascista e minha música é funcional. Eu toco minha morte que suas mãos assassinas me deram, e exulto porque, mesmo assim, continuo vivendo. Devolvo o que digo em forma de uma música que nunca poderá será ouvida por vocês, porque meu som é para meu o povo que grita: derrubem o gueto, let my people free. Vivemos no sistema mais racista e vicioso do mundo, onde a minha gente é massacrada nas ruas de Soweto e nas de Harlem. O que acontecerá quando nossa raiva coletiva não poderá mais ser contida? Nossa reação será negra, assim como negro é o sofrimento, como Fidel é negro, como Ho Chi Min é negro. Cada um de nós é peça fundamental do enorme movimento por direito civis, e isso se reflete em minha música, o jazz. Ele constitui a grande contribuição que a América do meu povo deu ao mundo. O jazz nascido da opressão e da escravidão de minha gente, é contra a guerra, contra a intervenção no Vietnam, está ao lado de Cuba e da luta de libertação de todos os povos, é a sua natureza. O velho jazz torna-se o novo jazz, através de uma mensagem que até hoje não podia ser formulada; por tempo demasiado os afro-americanos sofreram imposição de uma narrativa histórica que não lhes pertencia. O jazz é libertador”.
Assim dizia Archie Shepp no auge de sua criatividade, no momento mais alto de uma carreira artística e humana que atravessou as décadas colocando o dedo nas feridas da hipocrisia de uma sociedade doente. A música é sim um ato político capaz de ir contra o próprio sistema econômico, no coração do capitalismo mundial cuja única finalidade é a dominação, a ganancia, o lucro a qualquer custo. “Se a música não bastasse, escreveria um poema a cada instante: Let my people free, deixem o meu povo livre”.
A busca e a luta pela liberdade permeiam sua personalidade inquieta e o empurram nos braços da New Thing, a nova coisa, o free jazz daqueles anos ferozes, onde o ato de viver era própria obra, sendo ela constantemente inacabada no work in progress da existência. O embate contra o peso da história e a relevância formal da música erudita de origem europeia branca, tomava como ponto de partida o desconhecimento da tradição popular por parte dos compositores contemporâneos mais importantes que se atreviam a falar sobre o jazz ou, até mesmo, a compor música inspirada nele. O novo tinha que surgir do novo. Um novo vindo de longe, moldado nas entranhas da plantation e crescido nos guetos urbanos de metrópoles infernais.
Por isso a polirritmia compositiva se torna a base da nova música em que a melodia derrete sua estrutura em um todo onívoro, feito de feiura proposital e agressão auditiva. As formas da tradição secular da norma escrita, englobadas na linguagem geral como matéria bruta, tornam-se caricaturas de si mesmas, morrem e renascem sob a forma de citação, repetição, ponto de referência cômico, grotesco, de um passado pertencente a outras terras, outras gentes.
A música transforma-se em ato dionisíaco, irreverencia paroxística, forma livre em um sistema social onde o paradoxo do mito do sonho americano da ascensão social, fabrica losers, perdedores, excluídos, oprimidos, humilhados e ofendidos, aos milhões, no mundo inteiro. Por isso a arte, ação libertadora, é faísca de rebelião. Como se ao tocar seu necessário e lancinante sax tenor, Archie Shepp encorajasse cada um de nós dizendo aquilo que o velho Karl já dizia: Na revolução nada temos a perder, só nossas correntes.
ARCHIE SHEEP ACERIMÔNIA ANIMISTA DO FOGO
E o que falar de Archie Sheep que não se contenha em pô-lo como um avant-garde? Existe uma pulsão além no jogo de atonalidades provocadas por seu sax tenor, uma implicação mística de chamamento ancestral e aos espíritos. A Arte de Sheep se faz como ponte entre esses dois mundos: o perceptivo material e o afrocêntrico, – o início da vida e as origens anímicas do ser.
O rasgo do seu instrumento entrelaçado com o trombone de Joseph Orange em Hambone, no álbum Fire Music deixa bem clara essa opção ou chamamento da voz e do grito dos ancestrais.
O LP é de 1965 e fora gravado na Impulse! Records. Selo a que chegou levado por seu grande amigo John Coltrane. Lá permaneceu por mais nove obras retornando após migração por outras gravadoras para mais três discos. Na Impulse! Podia fazer o que quisesse, podia ser o gênio de sempre e, em meio a esta genialidade, alcançou o afrocentrismo.
Em um primeiro momento pode parecer que não passa de um engajamento político de cunho progressista no sentido de enaltecer a figura de Malcolm X; isso num momento bem sensível de escancaro do racismo estadunidense (porque este sempre esteve presente como uma das raízes mais profundas da cultura de lá, apenas aflorou definitivamente como reação ao Espírito do Tempo que não permitia mais o arcaísmo dos negros pendurados nas árvores). Mas era mais, era uma entrega às vozes internas dos espíritos e do anima natural, essa junção sobrenatural cercou toda a sua obra a partir de Fire Music, o que após só foi se aprofundando. Sua música parece se dirigir ao transe, o que sentimos em Los Olvidados (mais uma vez o símbolo contra a opressão, pois agoniza em seu saxofone tenor as agruras dos americanos latinos no meio á ideologia redneck do profundo).
Luis Buñuel dirigiu Los Olvidados em 1950, já fora da Espanha por causa da ditadura franquista. Nesse filme de sua fase mexicana, as intervenções surrealistas estão submetidas à narrativa naturalista de crianças e jovens condenados à marginalidade no subúrbio do México. Buñuel retomou sua produção cinematográfica no México com Gran Cassino de 1947; vale lembrar que o filme anterior ao de 1947 fora rodado no interior remoto e miserável da Espanha em 1933 e tratava de um documentário chamado TERRA SEM PÃO.
Retrato da miséria há uma comunicação direta entre o Terra sem Pão e Os esquecidos: ambos retratam o que a pobreza e a miséria podem fazer no físico e na psicologia de grupos estigmatizados a vivê-la.
Homenagem ao mestre vale muita esta comunicação, pois se trata de dois gênios impassíveis. Essa ponte é a vontade de denunciar as causas da pauperização de parcela considerável da população. Ambos, música e diretor cinematográfico, buscaram dar sua Arte como retrato do que deve ser mudado e insistem em impingir como um dogma.
Malcolm, Malcolm Semper Malcolm – enche de solenidade a figura do líder negro, juntando ao seu forte símbolo o termo em latim. A figura de Malcolm é a de um líder espiritual que estava em seu pleno desenvolvimento quando assassinado. Mais uma vez as circunstâncias nos levam a entender a obra de Archie Sheep como uma evocação à força da matriz dos espíritos. Posto que Malcolm fora uma liderança política-espiritual cujo entendimento estava em plena ascensão pela teologia da libertação contrária a do cativeiro (como tão bem nos ensina Leonardo Boff).
Malcolm cada dia que passava mais se ambientava espiritualmente com uma concepção transreligiosa, tolerante e acolhedora.
E essa evocação a Malcolm em Fire Music é o chamamento dessa realidade suprema de Justiça e Amor, aquela que só se entende se deixar o ego de lado e conscientizar da importância da ação humana e da riqueza dos ideais e dos símbolos. Malcolm virara um símbolo da resistência ao retrógrado sentimento de ódio a grupos étnicos, mas também de afronta ao descaso à dignidade humana.
A desconstrução da Garota de Ipanema é interessante por que estava rolando os 60 e a Bossa nova tinha sido digerida como produto de cultura estadunidense de massa. Archie fez a crítica em metalinguagem da subversão da música massificada com suas atonalidades provocativas.
Claro que isso não traz descrédito algum à obra soberana de tom Jobim e Vinícius de Moraes em si, mas tal crítica poderia ser sacada contra qualquer coisa investida de industrialização e de marketing de massa.
Assim caminha a humanidade e Archie já havia se envolvido com Coltrane, Ornette Coleman e Cecil Taylor. Com Coltrane participou de A Love Supreme – uma ode ao contato extático com o divino – e com Ornette Coleman arregimentou o New York Contemporary Five – vanguarda total. Suas trocas ou odes são infinitas: alçou voos com Don Cherry, homenageou outros universos musicais como os casos de Sidney Bechet a Sun Ra. Sobre esta constelação de personalidades tão distintas como óleo e água Archie conseguiu tecer um liame.
Assim como os deuses diversos do Jazz que juntou pelas notas emitidas de seu sax tenor, transporta a audição para a misticidade africana, para sortilégios de vodu ou dignidades ancestrais. Passa por toda a espiritualidade africana e compõe sua dodecafonia jazzística com as mensagens que emanam da pátria mãe, que é ao mesmo tempo origem da vida.
Culto da ancestralidade e às entidades permeia a diáspora negra escravizada pelos ditos cristãos homens de bem, formando características diversas conforme o modo de inserção social que os homens e mulheres cativos tiveram pelas regiões onde foram colocados. Essa inserção que não conseguiu arrefecer as raízes é que impulsiona a criatividade de Sheep em The Magic of JU-JU, no longo diálogo de Frank Charles e Dennis Charles marcando o ritmo de JU-JU. Ali está uma entidade africana expressa nas cabriolagens do sax tenor forte e ligeiro que o músico imprime por todo o diálogo das percussões. Exemplo de como Artie Sheep nos remonta às civilizações milenares com percepções próprias e que, de alguma forma, não foram extintas no inconsciente coletivo afrodescendendente.
Artie Sheep é a vanguarda do sentimento ancestral e, com isso, fundamenta um paradoxo onde a tradição é o passo para o futuro numa miscelânea de ideias que só seriam confiáveis em meio à atonalidade ríspida de seu saxofone tenor.
Porque o futuro é o passado (re)construído e o presente pertence a nossa ação.
Ajamos!