OLHARES

 

 

Por Clementino Jr. 

 

 

“A sociedade é como o ar: necessário para respirar, mas insuficiente para dele se viver.”
George Santayana

Recentemente, as narrativas midiáticas poderiam ser resumidas à palavra sufocamento. Lógico que o que escrevo não surge só nesse período recente: é muito mais antigo. Mas quando a palavra “sufocar” surge, ela traduz muitos outros sentimentos que não têm a ver com o ar em si, mas que nos roubam o ar.

E o criminoso perfeito — o gênero masculino é preferencial neste adjetivo — evita deixar provas do crime. Ele cria condições para que a mente das vítimas, ou seus próprios corpos, comecem a se punir, a se sufocar, a perder a vida ou o tempo de viver, tentando sobreviver.

O racismo, que é uma doença que praticamente funda o país, adoece sempre a vítima e não o agressor. Séculos de dores que se tornam precauções limitadoras, cerceadoras da liberdade. E isso acontece a tal ponto que, mesmo em momentos em que a liberdade das pessoas vitimadas por esta doença se faz presente, ainda é difícil caminhar livremente, pois as amarras deixam marcas.

Com o tempo, o lugar da vítima, que era exclusivo das raças violentadas, em especial no novo mundo, ganha o caráter de classe e status de oprimido. No campo espiritual, o opressor é possuído pelas forças malignas que, na igreja, denominamos por uma palavra que cabe muito bem neste país, no mais alto cargo da administração pública. E é nesse momento que o mal, vindo de cima para baixo, deixa o planalto quente e o ar pesado para respirar.

O cenário que foi preparado na última década para o resultado da política atual foi baseado em algo que eu ouso nomear de sufocamento. Alguns personagens do congresso e do judiciário tomaram ações sobre outros personagens, que estavam em destaque naquele momento, e os bombardearam de acusações, entre objetivas e falsas, criando “pautas bombas” para serem votadas pelos nossos legisladores. Eram tão absurdas e urgentes (mobilizando a oposição e os ativistas) que qualquer um que se preocupe com os rumos do país se viu cansado, esgotado e sem ar.

Sim, a tática era a mesma de quem tenta provocar afogamento em terceiros, mas sem precisar botar a mão em seus pescoços. O sufocamento não vinha da pressão para matar, mas de colocar seus opositores — ou oprimidos –, 24 horas por dia, na luta por sobreviver. Leis e ações conjuntas contra o povo, contra as conquistas recentes dos movimentos sociais que, em paralelo, alimentavam um sentimento que não se via no país em quase 50 anos, de valores extremistas e conservadores.

A mobilização da opressão — maligna — foi mais eficiente do que a da resistência e sobrevivência — benigna. O antagonismo entre o bem o mal, tipicamente bíblico, mesmo que nada tenha a ver com o que qualquer Deus pregue, corre pelos dedos e telas com uma velocidade desigual, em um país onde a imagem ainda funciona melhor do que as letras e, de uma hora para outra, aquele que representa o bem e o mal, para ambos os lados, se torna líder. Aqueles que não estão nesses polos de ideologias ou discussões só viam uma imagem concorrendo nos discursos. E eles, que decidem uma eleição, optaram pela visibilidade das opções oferecidas. Uma imposição da imagem de um homem como opção, ou oposição extrema, que foi bombardeado, de maneira maligna, por outro homem. E nessa luta de homens, se afogou a mulher que estava no meio do embate.

As redes sociais, públicas ou privadas, como as que vão direto no número de celular de cada pessoa, são uma metáfora fria e digitalizada das emoções das relações humanas. Elas foram os canais responsáveis por acusações, por manifestações, por fake news, por dor, por stress, por nos tirar o ar na luta contra injustiças, difamações e violências constantes e diárias. O sufocamento enfraquece cada indivíduo, cada coletivo, cada sociedade que se desarmoniza e enfraquece.

ar dessa metáfora está para além do oxigênio que falta nas UTIs dos hospitais durante a pandemia, do que fica impuro com o desmatamento sem freio ou da pólvora em operações proibidas em favelas, que aumentaram após a proibição pela justiça. O opressor nos impõe, como forma de sobrevivência, uma espécie de apneia.

apneia é quando é interrompida a respiração. Quando o processo de comunicação entre o ar e o nosso corpo, o qual gera a vida, “perde o sinal”. É um sufocamento voluntário ou imposto. E, sem ar, o que fazer?

Ao mesmo tempo, apneia também denomina um esporte onde o mergulho sem equipamentos respiratórios, apenas com a interrupção da respiração e a retenção do ar, se transforma numa verdadeira prova de resistência do mergulhador, para prolongar o tempo de independência da respiração. Uma superação dos limites humanos, conquistada a cada segundo, sobre a pressão das águas, do corpo e da mente. A mente é fundamental para que o corpo resista até recuperar o ar, voltando a respirar. E assim, respirando, poder pensar em lutar.

O sufocamento, por um conflito entre opressores, mudou de lado. E isso acontece graças ao uso conveniente de um vírus que ataca as vias respiratórias e sufoca quem é contaminado. E, assim, o governo acha ter resolvido, com o aumento de contaminados, o problema da economia que surge com o tempo: uma população idosa que precisa da previdência social.

A apneia, nesse sentido, se converte em uma esperança para inverter o jogo. Sufocar o opressor mostra que os padrões de resistência se atualizam, conforme mais resistente fica o oprimido, por gerações e séculos de opressão. A solução, então, virá do sufocamento dentre os próprios opressores. Mas temos que estar treinados para resistir sem ar, voltar a superfície e poder, no final dessa etapa, respirar livremente, sem temer o ar, sem temer o governo e contando que a justiça recente, assim como a histórica, se faça presente.

“Quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo.”
George Santayana