CRÔNICA
Por C. Alfredo Soares
Fiz recentemente meu exame de DNA. A intenção era estabelecer um vínculo seguro com o passado, descobrindo de onde partiram meus antepassados, por onde andaram e como chegamos até aqui.
Esse tipo de pesquisa, feita em laboratórios sérios e renomados, ganhou força nos últimos anos na medida em que seu preço ficou mais acessível. Provavelmente ficará mais em conta ainda, de acordo com o aumento do interesse das pessoas.
Mas voltando a minha intenção, aguardei a chegada do resultado após enviar meu kit, que veio pelo correio para que eu recolhesse o material genético. Confesso que postei de volta no mesmo dia em que recebi do laboratório.
Todo o processo é monitorado com códigos de rastreamento e senhas.
Assim aguardei por 15 dias até receber a resposta que tanto ansiava.
Meu exame apontou que tenho 73% de africano, 20% de europeu, 4% de americano e 3% de asiático.
Bem, isto não explica tudo.
Meu bisavô, por parte de mãe, de nome Geraldo Leite, dizia que era da África do Sul, mas ninguém da família confirma se é verdade tal afirmação, até porque não há registro algum sobre a origem dele.
Já por parte de pai, não sei de nada pra trás. Apesar de me lembrar do meu bisavô João Mundica.
A única coisa certa é que o vô Geraldo fora escravo de um senhor de engenho chamado João Chrisostomo Leite, que deixou um pedaço de terra pra ele e seus irmãos lá para o lado do Imburizinho. Seu sobrenome advém dessa relação. Soube, também, que era um negro magro e alto e que tinha sotaque de estrangeiro, além dos dois irmãos, que por sorte, nunca foram separados dele.
Quando recebi o resultado fui ver de qual parte do continente negro vinham meus antepassados; percebi que a missão é bastante difícil de ser concluída. Pra minha surpresa o mapa aponta uma região que vai do Oeste africano até o leste, passando pelo sul (Moçambique, Angola, República Democrática do Congo, África do Sul, etc…) uma vastidão de terra que não permite precisar o local exato. Por outro lado a surpresa do percentual europeu – 20% -indicava que parte dos meus antepassados viveram nos Bálcãs, passando pela península Ibérica indo até a região da Islândia.
A pesquisa abrange 100 mil anos de história e só será mais precisa com um mergulho capaz de estabelecer contatos com esses lugares.
Compreender essa longa caminhada é preciso. O exame não fecha portas, ele abre questionamentos diversos e ainda traz uma seleta relação de primos de terceiro ao décimo grau, comprovada pelo cruzamento de dados de DNA coletados mundo afora.
Existem vários sites especializados na pesquisa genética.
Além dessas informações recebi uma relação de nomes de pessoas com grau de parentesco confirmado pelo DNA, o que me levou a fazer contato com alguns.
São muitos e levarei anos se quiser conhecer todos.
Dos poucos que já contactei, alguns retornaram os e-mails. Mas um me chamou atenção. O nome dele é Deco. Percebi que ele estava desanimado por não ter conseguido fechar o elo dessa corrente que o exame nos trouxe. Deco me passou o nome dos seus pais e avós e de onde eles são. Pude perceber, na pratica, algo que lia nos livros de história. Que os negros quando aqui chegavam eram separados e vendidos para os mais diversos lugares, perdendo assim seus laços, que por ventura, tinham com outros escravizados.
A falta de registro faz com que a pesquisa esbarre num abismo difícil de transpor, aquele que excluiu a possibilidade de ligação física capaz de promover uma vida em comunidade ou uma relação de proximidade. Como ir almoçar na casa de um, ir ao casamento de outro. Coisas banais que se fazem em família. Não existe dúvida sobre nosso parentesco, a ciência comprova.
Contudo a escravidão cuidou de nos separar afetiva e documentalmente. Nos enfraqueceu pra nos deter diante da falta de condições de reagir. Fazer o exame resgata, em parte, esse sentimento de pertencimento que todos devemos ter. Tenho mais de dois mil primos.
Parentes perdidos no tempo, vítimas de um período de apagamento da civilidade humana.
Difícil será pavimentar essa história com amor e amizade. Mas parte da jornada foi iniciada.
Quem sabe um dia não nos reuniremos numa festa de família, com inúmeros parentes afastados pela diáspora.
Neste dia iremos falar dos nossos pais, avós e bisavós, vamos comer, dançar e cantar do nosso jeito. Tocar tambor até restabelecer a conexão ancestral que nos trouxe até aqui, sem que perdêssemos o perfume das folhas da nossa verdadeira árvore genealógica.
Me lembrei da canção do Djavan, que diz na letra de Soweto:
“Kinshasa, Beirute, Maranhão
O negro que lute
Pra poder sonhar
Em mudar isso aqui “…
Estou lutando.