REFLEXÃO 

 

 

Por Daniel Vila-Nova

 

 

“A golpes de machado, derrubam a árvore, à qual, depois de estar no chão, lhe tiram todo o branco; porque no âmago dêle está o Brasil”.

“Nossos bosques, tem mais vida.”

No último 13 de maio — aparentemente, um dia “abençoado” para leis que “pegam” não pelo direito, mas pelo avesso — Neri Geller, o Vice-Presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) reapresentou o Projeto de Lei (PL) nº 3.729/2004 ao Plenário da Câmara dos Deputados. Sem fazer muito alarde, com pouquíssima discussão e como se fosse um passe de mágica, Geller parecia entortar ainda mais um pau que já nascera, 17 anos antes, torto.

A chamada “Nova Lei do Licenciamento Ambiental” de “novo” não tem nada. De novo, o que se observa é a tentativa preguiçosa de exploração pouco produtiva e sustentável dos recursos naturais no país. Sob o pretexto do eufêmico “flexibilizar”, o que se busca, a rigor, é uma “licença para desmatar”… A golpes.

As citações destacadas acima nos dizem muito sobre como a ideia de Brasil e da própria vitalidade de nossas riquezas naturais, das virtudes de nosso Povo e da pluralidade de nossa cultura foram talhadas… Por meio de golpes e mais golpes.

Há muito de Brasil no âmago de ambos os trechos citados ao início da Coluna desta Segunda-Encruza — o primeiro, extraído do mais que quadricentenário “Diálogos sobre as grandezas do Brasil” (publicado, em sua primeira edição em 1618); e o segundo, também contido no âmago do Hino Nacional Brasileiro, escorre “isso aqui, ô-ô; é um pouquinho de Brasil iá-iá”.

Afinal de contas, para render a homenagem às belas letras do brasileirês de Ary Barroso: “Isto Aqui: o que é?”

O início e o roteiro história da exploração “a golpes” do Pau-Brasil (com hífen) diz muito sobre a mudança da relação entre natureza e a espécie humana. Embora a presença abundante dessa espécie vegetal fosse a marca registrada das matas litorâneas do Brasil ao momento do descobrimento, a transformação daquelas novas terras em mera Colônia de exploração, é, sem dúvida, o primeiro efeito ambiental nocivo da interação cultural entre um povo que se dizia civilizado; e outros diversos povos — chamados de “selvagens” — extrema e profundamente adaptados às florestas e matas brasileiras.

A primeira transformação da chegada dos portugueses ao Brasil foi a de submeter a diversidade florestal da Mata Atlântica ao desequilíbrio. Não à toa, a então Colônia portuguesa era enquadrada como “de exploração”.

Como destaca Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”, a relação da Metrópole com a Terra do Pau-Brasil foi baseada, sobretudo nesses excessos extrativistas. Primeiro, pela exploração de nossos recursos florestais; em seguida, pela exploração da mão-de-obra (com hífen) dos brasileiros nativos — os povos indígenas originários daquelas terras que aqui estavam há muito. Em terceiro, ao mesmo tempo que o território era explorado e mais e mais pessoas — antes livres — iam sendo exterminadas, uma nova narrativa dessa exploração ia e segue sendo contada: “foi assim que o Brasil foi descoberto”.

A única ressalva que faço é que Sérgio retrata o colonizador português a partir da caricatura do “semeador”… Tenho sincera restrição à suposta candura da imagem. Primeiro, porque ela remete à imagem cândida do Evangelho na versão em que Cristo semeia a “Boa Nova”. Segundo, porque, ainda que a profecia de Pero Vaz de Caminha tenha certo acerto — afinal, é uma terra generosa em que “em se plantando, tudo dá” —, para “em se plantar”, é preciso “extrair” os povos e as matas nativas que aqui habitavam é que mantinham as terras “cobertas”.

Minha Querida Leitora, Meu Querido Leitor, meu Queride que lê: desde criança sempre fiquei muito intrigado com a expressão “Descoberta do Brasil”. Para mim, o sentido de “descoberta” trazia um sentido incômodo de contraste com algo que estava “coberto”, “seguro”, “confortável” e logo deixou de sê-lo (com hífen). O fato é que, sendo um brasiliense, nascido no quinto final do Século XX, me recordo que “descobri” o tal do “Pau-Brasil” somente por um Selo Postal. Era uma ilustração de Álvaro A. Martins, que a minha Professora Diva levou para a Escola que eu frequentava. Hoje, é esse selo que ilustra a nossa coluna.

Se Você perceber bem, a imagem traz um destaque sensível para uma ramagem com flores de um amarelo bastante vibrante, no exterior de suas pétalas; e de um avermelhado intenso — quase vinho — na parte central de cada flor. Já parou para pensar que, talvez, tenha sido exatamente da inspiração desse “verde-louro” que tenham surgido as cores dominantes da Bandeira Nacional?

Outra palavra que, para mim, sempre me trouxe espinhos na língua é “desmatamento”. Por algum motivo pelo qual os prefixos sempre me cutucaram — e ainda cutucam — esse “des-“ me dava a impressão errônea de que era possível recuperar a vida. Regenerar a vida.

Foi a mesma professora Diva, a pessoa que me educou na Segunda Série de uma Escola Pública perto da casa em que morávamos. “—O verbo ‘desmatar’, Daniel (disse-me Ela) é matar de uma vez por todas!”

Aquilo me impactou bastante. Primeiro, porque “descobriu” todo um outro sentido que antes me era “encoberto”. Segundo, porque foi a primeira vez que percebi (acho) que era possível ir morrendo aos poucos… “Desmatar”, portanto, pelo que achei que, então, tinha entendido, era matar de vez. Só bem depois compreendi que “desmatar”, em verdade, é o processo de “extração”, de “eliminação”, ou melhor de “extinção” das “matas”.

Assim, com base na exploração para além da exploração, era extraído o âmago civilizatório dos diversos povos que aqui habitavam por milhares de anos e aos milhares. Depois de cada pé estar no chão, o âmago natural de nossas primeiras matas nativas desmatadas era extraído… De nós mesmos, a ponto de sequer nos lembrarmos mais, de nossos povos originários.

“A golpes de machado”, boa parte do Bioma da Hoje chamada Mata Atlântica, veio ao chão de uma Terra antes conhecida pelos Pés de Pau-Brasil. Boa parte da Floresta em pé; Hoje, está derrubada. No seu lugar, atualmente, ainda vive a maior parte do povo brasileiro.

A Mata Atlântica, cujo dia de celebração é 27 de maio (pouco depois da próxima Segunda-Encruza), corresponde ao Bioma Brasileiro mais desmatado. Neste 17 de maio de 2021, restam menos de 7,5% da cobertura original, a qual resiste e tenta se adaptar à extensa rede de cidades que se espalhou, de norte a sul, no litoral brasileiro.

As verdes matas que levaram Gonçalves Dias a versar “Nossos Bosques tem mais vida” se estendiam entre dois “Rios”, do Rio Grande do Norte, ao Rio Grande do Sul — por quase toda a extensa faixa costeira do Brasil. Há muita poesia e ciência nos versos do autor de “Os Timbiras”.

A despeito de terem restado pequenos trechos da cobertura vegetal original, estima-se que até 8% de toda a biodiversidade do Planeta, estejam nesses menos de 7% de matas tipicamente brasileiras. É exatamente uma parte desse tesouro que “os velhos piratas” querem seguir a transportar…

“Nova Lei de Licenciamento Ambiental” parece com algo de reverência ao sagrado… Não nos enganemos. Do jeitinho que está? Não passa de redivivo Santo-Do-Pau-Oco (com todos os mesmos hífens de outrora).

Somente desse jeitinho — um jeitinho bem português (e, lembremos, também, inglês), diga-se de passagem — é que conseguimos entender como o Brasil foi verdadeiramente “descoberto”: “a golpes de machado”, as matas que cobriam nosso território e que protegiam as formas de viver dos nossos brasileiros povos foram desmatadas.

O Pau-Brasil, Hoje, árvore-símbolo do país; e, também, a primeira espécie de vida levada quase a extinção carrega, no seu âmago, muitas das virtudes e, também, dos vícios que a condição de brasilidade carrega consigo. Com a aprovação na Câmara do “novo projeto de lei”, pouco mais sobre o Brasil se desbota. A golpes de machado… A golpes — e com a ironia do brasileirês de Machado — extraem-se um pouco mais sobre o que já esteve no tronco de uma árvore chamada Pau-Brasil…

Enquanto ainda há “Bom Combate” possível na preservação daquilo que nos constitui e nos angustia, fico com a valorosa Humanitas de Quincas Borba:

“Ao vencedor, as batatas!”

Dândi-à-Deriva* é o pseudônimo de Daniel Vila-Nova (também com hífen), colunista, às segundas, neste espaço. O autor é  brasiliense (da clara e da gema), poeta de palavras, jurista e professor, com formação em Direito e em Política. Em 2009, publicou, pela LTR Editora, o livro “Rádios Comunitárias, Serviços Públicos e Cidadania: uma nova ótica constitucional para os serviços públicos de (tele)comunicações no Brasil” — fruto de sua dissertação de Mestrado em Direito, Estado e Constituição, pela Universidade de Brasília (UnB). Em 2017, publicou #PoesiaBinária: #Fr4gm3nt0s, pela Editora Cryativa. Neste 2021, defendeu a Tese de Doutorado “Supremologia: o STF nas encruzilhadas da Política & do Direito no Brasil”, pelo Departamento de Ciência Política do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (DCP/ICHF/UFF). No Instagram mantém o perfil @vila_nov4 (procure #DândiÀDeriva).