SOCIEDADE
Por Juliana Rocha Tavares
Num contexto de pandemia do coronavírus e de uma progressiva redução nos investimentos sociais a nível municipal, estadual e nacional, centenas de famílias iniciam a maior ocupação urbana relatada na história recente do município de Campos dos Goytacazes, maior município em extensão territorial do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com dados levantados pela Secretaria de Desenvolvimento Humano e Social, em Campos, cerca de 130 mil pessoas, que correspondem a mais de 25% da população campista vivem com até R$ 89,00 por mês, ou seja, em estado de extrema pobreza. [1] É natural, portanto, que a questão da moradia tenha ganhado uma nova centralidade, uma vez que muitas famílias, no contexto da pandemia, tiveram que escolher entre comer e pagar aluguel. De acordo com matéria publicada pelo Jornal Terceira Via, as casas populares já estariam prontas e sem cumprir função social desde, pelo menos, 2016. [2]
A ocupação nos Conjuntos Habitacionais Novo Horizonte I, II e III, no Parque Aeroporto, iniciou-se na noite do dia 13 de abril, contando com um grupo majoritário de mulheres, que relatam ter havido conflitos com a Polícia Militar durante o processo. Em entrevista, uma ocupante contou que chegou a ficar três dias sem conseguir se alimentar, por medo de “perder” a casa ocupada
A ocupação une grupos bastante diversos, como contemplados pelo sorteio do “Minha Casa, Minha Vida”, que aguardavam pela entrega das chaves, inscritos no programa que não foram sorteados (mesmo atendendo todos os critérios), famílias que foram ou seriam despejadas por inadimplência no aluguel, famílias inteiras que estavam morando de favor em cômodos pequenos e inadequados na casa dos parentes, famílias que viviam em imóveis que apresentavam problemas estruturais e/ou que se situavam em áreas de risco, entre outros. O que une todos esses grupos? A situação de extrema vulnerabilidade e a luta pelo direito constitucional à moradia. Grande parte das famílias só permanece na ocupação sem acesso à água e à luz por mais de 30 dias porque simplesmente não tem mais para onde retornar.
Os ocupantes organizaram um primeiro ato no dia 14 de abril na BR 101, para chamar atenção da mídia e do poder público para a pauta da moradia. No dia 15 de abril, a Polícia Federal notificou as famílias de uma ordem judicial de reintegração de posse, prevista inicialmente para acontecer a partir do dia 21 de abril. As famílias, então, organizaram novos atos nos dia 16 e 20 de abril.
No dia 16 de abril, lideranças da ocupação entraram em contato com a jornalista Daniela Abreu, que iniciou o diálogo com diversos movimentos sociais, que decidiram apoiar a ocupação Novo Horizonte. Os movimentos redigiram o “Manifesto Contra a Desocupação no Parque Aeroporto”, que foi assinado por mais de 30 entidades. No dia 17 de abril, a Rede Emancipa Campos fez uma primeira doação de 30 cestas básicas para as famílias ocupantes em maior vulnerabilidade social. Em tempo recorde, a advogada popular Rafaelly Galossi acionou a Defensoria Pública da União (DPU), que conseguiu suspender a reintegração de posse. A partir do dia 21 de abril, então, diversos movimentos sociais passaram a apoiar diretamente a ocupação, através da construção da cozinha comunitária, arrecadação de alimentos, além de atividades culturais e apoio jurídico à ocupação.
No dia 24 de abril, a Realiza e a Caixa entraram com um novo recurso e as famílias foram notificadas de que a reintegração de posse ocorreria num prazo de 5 dias, com possibilidade de uso de violência, podendo ser solicitado, inclusive, o apoio da Força Nacional. Iniciou-se, então, por parte dos movimentos sociais que apoiavam a ocupação, um trabalho de mapeamento das famílias ocupantes, necessário para entender o perfil social e interseccional de tais famílias. Tal mapeamento embasou o novo recurso da DPU, que garantiu, a partir do dia 01/05, mais 30 dias antes da reintegração de posse. O mapeamento foi realizado através de entrevistas com 303 famílias ocupantes (quase 50% do total de famílias), confirmando a tese de que se tratavam de famílias estão em extrema vulnerabilidade social.
A partir da análise dos dados parciais, pudemos observar que, quase 20% das famílias declararam não possuir renda definida, 33% se encontravam em estado de extrema pobreza (renda per capta inferior a R$ 89,00) e 24% se encontravam em estado de pobreza (renda per capta entre R$ 89,00 e 178,00). Menos de 1% das famílias declararam possuir renda per capta superior a R$ 1000,00. Dentro de um recorte interseccional, mais de 80% dos ocupantes declararam ser pretos ou pardos e 66% das chefes de famílias são mulheres, sendo 47% do total, mães solo. Muitas delas trabalhavam como manicures e diaristas e perderam sua principal fonte de renda com a pandemia.
Quase 80% dos entrevistados afirmaram que já sentiram fome e todos declararam que a situação piorou após o início da pandemia. Quase 60% dos ocupantes afirmam possuir Ensino Fundamental Incompleto e nenhum deles concluiu o Ensino Superior. Em relação à ocupação dos entrevistados, quase 80% afirmaram que eram trabalhadores informais ou autônomos e apenas 2,6% afirmaram trabalhar com carteira assinada. De acordo com a análise da professora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e socióloga Luciane Soares: “Analisando as respostas dos entrevistados em relação à ocupação, observa-se um perfil com baixa especialização, ligados ao mercado informal, portanto, sem rede de proteção previdenciária e acesso aos direitos garantidos minimamente em lei.”
Em relação à habitação, 55% dos entrevistados afirmaram que não possuíam casa e nem estavam inseridos em nenhum programa de habitação. Um outro dado alarmante é que cerca de 34% dos entrevistados afirmou não possuir nenhum tipo de benefício social.
Conselheiros da sociedade civil do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) solicitaram uma reunião para pautar a situação das famílias da Ocupação do Novo Horizonte. A reunião do Conselho ocorreu no dia 10 de maio, com a participação de lideranças da ocupação e representantes de movimentos sociais que atuam em apoio à ocupação. O Conselho redigiu uma importante nota, em que, os conselheiros da sociedade civil e do governo reconhecem a legitimidade da ocupação no Residencial Novo Horizonte I, II e III. Foi criada também uma Comissão para acompanhar o mapeamento das famílias presentes na Ocupação e negociar junto à Prefeitura a oferta de Programas de Assistência Social e moradia para tais famílias. Fazem parte dessa Comissão as conselheiras Bruna Machel, da Associação Resista Campos e Graciete Santana, do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (SEPE), Luiz Paulo Gama, liderança da Ocupação e também representantes do poder público municipal. O mapeamento iniciou-se no dia 18 de abril, com a presença de uma grande equipe de Assistentes Sociais do município.
Em um país em que há tanta casa sem gente e tanta gente sem casa, em que o direito constitucional à moradia é negligenciado pelo poder público em todas as esferas, as ocupações urbanas são recursos legítimos e extremamente necessários na luta pela moradia. Esperamos que as famílias que ora ocupam o “Novo Horizonte” e tantas outras famílias em vulnerabilidade social continuem a sonhar e a lutar por novos horizontes, em que a justiça social, o direito à moradia, à alimentação, à saúde e à educação de qualidade sejam garantidos para todas e todos.
Aos leitores, pedimos que colaborem com a cozinha comunitária das famílias da ocupação, através de doações aos pix do Emancipa Campos (emancipa.campos@gmail.com) e do PCB, UJC e Unidade Classista (22 999376057).