OPINIÃO

 

 

Por Daniel Vila Nova

 

 

25 corpos estendidos no chão.

Não. Não era o corpo do Amarildo.

Não era Marielle.

Nem Ágatha, nem João Pedro.

Tampouco o de João Alberto.

Outras Vinte e Cinco pessoas mortas, na avenida da política nacional. Será que já sabemos os seus nomes? Pode procurar. Ainda não será algo fácil de identificar. O que se sabe é que duas dezenas e meia de pessoas foram exterminadas pela vala comum  das situações de violência policial. A Avenida Brasil, que aterrou o Rio Jacaré, de novo, nos aterra e nos desterra. Que Brasil é esse?

De acordo com o Geni-UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), a operação policial da última quinta-feira (6 de maio de 2021) foi a mais letal da história do Rio de Janeiro. Ficaram, para trás, os inesquecíveis e macabros “recordes” anteriores registrados: a) na Vila Operária em Duque de Caxias (23 mortos em janeiro de 1998); no Complexo do Alemão (19 mortos em junho de 2007); e, ainda, em Senador Camará (15 mortos em janeiro de 2003).

Parece que, neste pandemônio pandêmico, nós, brasileiros e brasileiras, nos especializamos em contar corpos…

E não precisa ser coveiro pra entender que cada uma dessas vidas importa.

As vidas, no Brasil, precisam ter alguma importância. Até quando teremos outros Jacarezinhos e Candelárias, “Senhor Deus dos Desgraçados”? Até quando desigualdade e violência continuarão a fazer parte de nossas vidas — e de nossas mortes?

Os motivos, as razões — ainda que se tenha alguma dúvida razoável a respeito — podem ser vários, menos a ideia concreta de que, a rigor, estamos a viver num Brasil em que a “pena de morte” segue a nos incomodar.

Segundo a Constituição do Brasil (o documento que foi promulgado há 32 anos e pouco mais de 7 meses), a pena de morte somente pode ser legítima e validamente aplicada em casos de “guerra declarada”, a ser oficializada, pelo Presidente da República, nos termos do Inciso XIX do artigo 84 da “Carta Cidadã”. Estamos em guerra contra nosso próprio povo?

A pergunta que fica é: esses 25 corpos inanimados eram de cidadãos e de cidadãs? Ou estamos a falar de outra espécie de Gente?

Seriam aquelas 25 pessoas, menos dignas, do que qualquer um de nós, Querida Leitora, Querido Leitor e Queride que lê?

Qual a cor dessas pessoas? Já parou para pensar sobre isso?

A voz potente de Elza soa e invade os ares…

É Elza Soares que nos canta “A Carne mais barata do mercado é a carne negra”?

Nesta Segunda, 10 de maio de 2021, nossa coluna é o resgate da força dessa música lancinante!

São os cantos e tilintar de correntes que seguem abafados… Não adianta falar em “abolição da escravidão” ou em “igualdade racial” se a vida das pessoas negras seguir a valer menos.

O Navio Negreiro de Castro Alves não afundou…

“‘Stamos em pleno mar… Doudo no espaço

Brinca o luar — doirada boborboleta— (…)”

Esses são os versos iniciais do famoso poema… “Doudo”, Hoje, se escreve e se fala “doido”. E como é doído, ás vésperas de mais um Treze de Maio, ser recordado, pelo sangue daqueles 25 corpos negros, no chão estendidos que “doirada” até pode ser lida, Agora, como “dourada”, mas que “Lei Áurea” só pode ser lida como “lei de ouro-de-tolo”…

Não é preciso ir à autoproclamada “Terra da Liberdade” pra compreender, às vésperas do aniversário de uma suposta “abolição”, que o Sonho Brasileiro de Liberdade ainda não se tornou real…

“Eu tenho um sonho”, disse Martin Luther King Junior a George Floyd, assim que ambos se esbarraram no outro campo da existência…

“Eu tenho uma fantasia”, diria eu, dando vazão ao impulso carnavalesco em mais um ano em que a irresponsabilidade, o descaso e a falta de sensibilidade e de empatia seguem a ditar a “evolução” do nosso trágico “samba-enredo”.

Encerro, a coluna desta Segunda, de modo sinestésico. Uma imagem e uma melodia.

Para os olhos da alma, deixo a fotografia espetacular do “desfile” do último primeiro de maio. O registro do fotógrafo Carlos Moura é tão impactante quanto a letra de Alvinho e Jurandir, no desfile da Mangueira de fevereiro de 1988: “100 anos de Liberdade — realidade ou ilusão?”

Segue a letra e — se puder — ouça a melodia de um samba-enredo que segue a nos indagar, às vésperas de 131 anos da Lei Áurea, se a “liberdade” — escrita pelo punho da Princesa — seguirá, ou não, apenas no papel…

Cantemos o negro samba da Mangueira, junto com o saudoso Intérprete Jamelão (aqui, o “link” no YouTube):

“Será…

Que já raiou a liberdade

Ou se foi tudo ilusão

Será…

Que a lei Áurea tão sonhada

A tanto tempo imaginada

Não foi o fim da escravidão

Hoje dentro da realidade

Onde está a liberdade

Onde está que ninguém viu

Moço…

Não se esqueça que o negro também construiu

As riquezas do nosso Brasil

Pergunte ao criador

Quem pintou esta aquarela

Livre do açoite da senzala

Preso na miséria da favela

Sonhei….

Que Zumbi dos Palmares voltou

A tristeza do negro acabou

Foi uma nova redenção

Senhor..

Eis a luta do bem contra o mal

Que tanto sangue derramou

Contra o preconceito racial

O negro samba

Negro joga capoeira

Ele é o rei na verde e rosa da Mangueira”

A “Unidos da Liberdade pela Saúde e pela Vida” vai sair às ruas de todo o jeito. Ela não precisa de Sapucaí, nem de Camarote ou de Abadá.

Na “minha fantasia de carnaval”, o povo brasileiro retorna às ruas. Ele não precisa estar de verde-amarelo, nem estar trajado de “pigmeus do bulevar”.

Minha fantasia é um sonho. E sonhar não custa nada. Com os pés no mesmo chão da Brasília em que há brasileiros e brasileiras debaixo da ponte, eu ouso sonhar! Precisamos transformar isso!

Enquanto a “Nossa pátria mãe tão distraída” segue dopada, não nos neguem o direito de sonhar!

No próximo 13 de maio, 131 anos após a Princesa Isabel assinar a “Lei Áurea”, que a Constituição do Brasil seja, de fato, uma Carta Cidadã, de amor, de vida e de saúde, a todos os brasílios e brasílias de que nos falava o triste visionário Lima Barreto. Eis o desfile que quero ver passar na Esplanada rumo à Praça dos Três Poderes!

“Vai Passar!”, Mangueirense Chico das Artes! Isso vai passar!!!

Dândi-à-Deriva* é o pseudônimo de Daniel Vila-Nova, colunista, às segundas, neste espaço. O autor é  brasiliense (da clara e da gema), poeta de palavras, jurista e professor, com formação em Direito e em Política. Em 2009, publicou, pela LTR Editora, o livro “Rádios Comunitárias, Serviços Públicos e Cidadania: uma nova ótica constitucional para os serviços públicos de (tele)comunicações no Brasil” — fruto de sua dissertação de Mestrado em Direito, Estado e Constituição, pela Universidade de Brasília (UnB). Em 2017, publicou #PoesiaBinária: #Fr4gm3nt0s, pela Editora Cryativa. Neste 2021, defendeu a Tese de Doutorado “Supremologia: o STF nas encruzilhadas da Política & do Direito no Brasil”, pelo Departamento de Ciência Política do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (DCP/ICHF/UFF). No Instagram mantém o perfil @vila_nov4 (procure #DândiÀDeriva).