CONTO
Por C. Alfredo Soares
E aí camarada, está tudo certo aí em cima?
Do lado de cá está a maior loucura.
Cada vez mais não nos entendemos ou não deixamos o outro se explicar.
Confesso que a pandemia aflorou em nós sentimentos estranhos, nos fragilizou e nos fortaleceu. Nos dividiu em dois lados. Uns negam, outros entendem. Uma coisa é certa: todos estão olhando para o lado em busca do próximo.
Não tem sido fácil.
O individualismo dificulta a aproximação. Que não é recomendada no momento. É uma bipolaridade social. Além de termos os cabeçudos, que insistem em empurrar na nossa goela suas drogas recomendadas por quem só pensa em levar vantagem.
Lembra desse chavão? Era daquele cigarro que você gostava.
Cigarro nunca foi bom, mas era o único charme que sobrava, junto com a pinga, naqueles tempos bicudos e botinudos, quando você andava por aqui com seus amigos “operários padrão”.
Sabe, muito do que você falava ainda vigora.
Uso ainda aquela cartilha de velhos e bons conselhos que você proferia sempre que me via em dúvida ou apuro. Confesso que aquele “homem que é homem, não chora”, caiu em desuso. Homem agora chora, e isso é bom.
Mas de resto são os mesmos, com um pouco mais de tecnologia a disposição.
O salário, infelizmente, continua o mesmo; não paga a conta no final do mês.
O encarregado, não é mais português, o patrão está mais rico, apesar de muitos terem falido, o ônibus caro, a carne nem se fala, os impostos nos assola.
Ao menos nosso time voltou a ser campeão, mas a torcida não vai mais aos estádios, futebol passa na televisão, no celular e nos aplicativos. Coisa que você nunca ouviu falar.
No seu tempo só se ouvia no radinho de pilha e, você, só comprava Raiovac.
Veja, passaram vários anos e os hábitos não mudaram tanto assim.
Sabe, você ia gostar de conhecer seus bisnetos, eles começaram a chegar por aqui. Seria uma farra. Seus netos já não são mais crianças. Praticamente todos fizeram Ensino Superior. Quando o senhor imaginaria uma coisa dessas?
Se bem que nós fomos pra faculdade…Deus sabe lá como!
Mas voltando aos netos, eles andam espalhados por aí. Tem até neta sua no exterior. Mas todos seguem conectados pelo afeto que você e mamãe sempre nos incutiram.
Pai, você pode se sentir vitorioso!
Olhe ao redor e perceba. Valeu tudo que você teve que suportar.
O tempo passa muito rápido. É uma pena. Ainda sou capaz de ouvir sua voz me gritando, num domingo de manhã, na beira do campo. Eu correndo atrás da bola e você me incentivando. Aquilo me fazia correr dobrado. Acabava o jogo exausto e feliz.
Na volta pra casa ia ouvindo você e seus irmãos analisando meu desempenho. Chegávamos em casa famintos, doidos pra comer frango assado acompanhado de farofa de cenoura. Eram domingos quase sempre memoráveis. Olha, não pense que eu não percebo você, de vez em quando, circulando por aqui, rindo das situações e soprando coisas nos meus ouvidos. Atuando na sombra. Você sempre será bem vindo pai. Seu lugar à mesa reside nos nossos corações felizes com seu legado.
Nesta quinta seria seu aniversário de 85 anos. Pra falar a verdade não sou bom de datas, minha irmã me salvou desta vez. A Nega fica furiosa comigo por conta desse meu defeito. Não se trata de pouco caso, é que você me ensinou a valorizar os pequenos milagres diários que nos permite continuar saboreando a vida, dia a após dia. “Olhe pra frente, menino”, e eu seguia seu conselho.
Por isso, pra mim, todo dia, que chega ao final, merece um brinde e um muito obrigado, por tê-lo enfrentado.
O sol se punha atrás das montanhas esperando um outro dia chegar, e ele chegava.
Fique bem aí pai e, mais uma vez, te peço benção, conselho e proteção.
Como pai que me transformei, todos os meus acertos devo à você, que até quando errou me poupou de errar também.
Me sinto privilegiado em ser seu fruto maduro.