Meu povo resiste. Submetido ao sofrimento atroz durante séculos de abusos inimagináveis sobre os quais foram fundadas as regras de convivência, filho do estupro colonial, filho do chicote, da marginalização, da negação de direitos, meu povo resiste. Através de uma organização desorganizada e caótica, esporádica, mas ao mesmo tempo capilar, ou, como diriam Deleuze e Guattari, rizomática, permeável, em constante mutação, uma adaptação contínua às circunstâncias inconstantes de um território hostil, dominado pela resignação atávica, meu povo resiste. Resiste em si e por si, resiste apesar de, resiste porque resiste.
A Rede Pessan – Rede Brasileira de Pesquisa sobre Soberania e Segurança Alimentar Nacional, divulga seus dados e torna público o que podemos ver nas ruas de nossas cidades, todos os dias. O aumento exponencial da miséria que ocorreu nos primeiros dez meses da pandemia, de março a dezembro de 2020. Estamos falando de 117 milhões de brasileiros em estado de insegurança alimentar e 19 milhões de pessoas afetadas pelo inimigo mais antigo da humanidade, a fome. O governo, sempre relutante em conceder o auxílio emergencial às famílias em dificuldade, cedeu sob a insistência da opinião pública e, sobretudo, por causa da chantagem parlamentar da base de apoio ao presidente. Migalhas, se o compararmos ao valor da dívida que as instituições bancárias têm com o Estado; migalhas, se o compararmos com a dívida das igrejas evangélicas. Migalhas, em comparação com os bilhões de dólares literalmente doados aos senhores do agronegócio. Mas meu povo resiste.
A favela condenada à morte pela violência do poder, pelo vírus, pelo desemprego, pelo tráfico de drogas, pela dominação das milícias paramilitares, a favela resiste. E organiza a distribuição dos alimentos doados e arrecadados pelos cidadãos e entidades solidárias.
“É um momento em que é necessário refletir e repensar nossa ação. Não estamos sozinhos. A ajuda, ou é concebida e executada horizontalmente, ou está condenada ao fracasso. Se não fossem essas pessoas com sua ação na rua, nas iniciativas de bairro, nada seria possíve. É o famoso nós por nós” das favelas. Porque, como diz uma colaboradora do Gabinete de Crise do complexo de favelas do Alemão, no Rio de Janeiro,“do céu não cai nada. Só chuva e bala”. Transformemos nosso luto fudido em força, no legado moral daqueles que vieram antes de nós: se hoje a situação é trágica para nós, imagine como era cinquenta, cem, duzentos anos atrás: era muito, muito pior. Devemos honrar o suor, o sangue, a história, o passado daqueles que vieram antes de nós, nossos ancestrais, só assim podemos continuar, e esse é o movimento de transformação que nasce do apoio mútuo e da solidariedade. É uma potência. Nossa dor não pode nos deixar na melancolia, na imobilidade. E o movimento contrário ao que a humanidade está fazendo, está nos tirando da luz do conhecimento para nos fazer cair de novo nos braços da religião sem esperança, o único refúgio daqueles que perderam tudo, até mesmo eles mesmos. É por isso que a organização é vital”.
Assim fala Kássio Motta, professor, eterno aprendiz, e educador social no Rio de Janeiro. Ele se refere às comissões populares de controle da Covid, organizadas em cada rua, em cada beco, onde comissões de agentes de saúde voluntários trazem ajuda e conforto, alimentos e medicamentos, coletam informações e as transmitem ao centro de saúde. Ele se refere às ações da polícia atirando do helicóptero nas pessoas, ele fala da influência das igrejas, não só na vida nacional, mas na dos indivíduos, a força da superstição que elimina as antigas tradições da religião afro-brasileira. Fala da história de nosso povo que resistiu durante séculos através da afirmação peremptória de sua identidade.
Segunda-feira é dedicada às almas dos mortos, mas também é ótima para sambar, acenda uma vela para o santo e outra para que perdoe o meu nunca inocente vadiar. A luz que vem de um clarão é uma chama que não se apaga, reflete a fé que tenho em meu coração e me guia, tão intensa como uma devoção, tão divina como uma oração, ela abre o caminho para aqueles que merecem. É o patuá do meu cordão, é o sol ao amanhecer, a tempestade no sertão, para que tudo possa ressuscitar, uma centelha de inspiração que de repente desce do céu e crava em meu peito um samba que não pode ser esquecido: ilumina meu Terreiro, o canto dos Orixás, a luta de um guerreiro, a tradição de meus antepassados, Ogan! Bata o tambor e você, batuqueiro, marque o ritmo com força: o Samba do Trabalhador é o Quilombo Brasileiro!
É assim que meu povo resiste, com arte, poesia, música. Como essa canção, que em poucas palavras fala da teologia afro-brasileira, e louva com ironia o “samba do trabalhador”, uma grande festa que se realiza por pura zombaria na segunda-feira, na qual o trabalho, entendido como um legado da obrigação escrava, é rejeitado e ridicularizado. E não só isso, o “samba do trabalhador”, é definido aqui como um Quilombo Brasileiro. Quando os escravizados fugiram para o interior inexplorado do país, eles se organizavam em grandes comunidades autônomas chamadas Quilombos. Alguns deles foram destruídos pela fúria dos senhores, outros conseguiram (r)existir até hoje. O Quilombo é um território mítico de liberdade, mas também um lugar físico onde os descendentes dos escravizados podem viver de acordo com suas tradições. Na dimensão coletiva, na celebração, no luto atroz imposto por um poder absoluto, na música coral, meu povo resiste.
Colaborou Kássio Motta