OLHARES
Por Clementino Jr.
“É melhor escrever errado a coisa certa do que escrever certo a coisa errada…”
(Patativa do Assaré)
O isolamento conduziu a todos ao uso e abuso de aplicativos de celulares e computadores como forma privilegiada de acesso a serviços e como modo de não perder a comunicação. Nos territórios de povos tradicionais, também isolados, e que precisaram lidar com a ausência de apoiadores e a presença maior de algozes e neocolonizadores, a comunicação se tornou o principal tratamento contra o vírus e a principal arma contra a limpeza étnica, conveniente nas entrelinhas de cada fala, canetada e ação do governo.
Nesse momento, surgem questões que nos isolam cada vez mais enquanto nação, pois, enquanto se pensa uma competição imaginária aos melhores cargos nos locais de decisão, tendo, entre outros itens, a questão da fluência verbal, quanto mais escrito é o argumento de cada pessoa, mais passível de erros gramaticais e de semântica ele é também.
A intelectual Lélia Gonzalez já falou muito sobre isso ao propor o “pretuguês” como a nossa língua e demonstrar, de maneira objetiva, o quanto o preconceito linguístico diminui o cidadão pobre que erra os plurais e singulares, que elimina os “erres” dos verbos no infinitivo, mas que acha que outras sintaxes linguísticas (es)tão de boa(s).
Com isso, os áudios longos, apelidados de “podcasts”, passam a ser a brecha para quem não tem a “prática” da “escrita correta” e usa as mensagens em áudio para expressar de forma autêntica, com ou sem erros, o que não conseguiriam expressar por escrito. Ficamos “ansiosos” para corrigir, mas, se o leitor não for ansioso ou intolerante, dependendo do que estiver em jogo, o sentido do que é dito é o que vale. Possibilidades de namoro são desfeitas “com certeza”, mas quantas pessoas letradas com certeza te magoaram, traíram ou simplesmente foram incompatíveis? “Reflitam”!
Lembro do momento da reforma ortográfica da língua portuguesa e do incômodo em setores do país matriz, vendo a oficialização de todas as transformações e evoluções de vocabulário e da gramática em seu uso popular. E será que é justo, exceto para salvaguarda de uma base linguística, censurar a expressão popular por não saber escrever ou, talvez, nem ler direito?
O chamado analfabetismo funcional, onde, por inúmeros motivos, a pessoa tem dificuldades de entender o sentido do que está escrito, mesmo lendo, traz fragilidades legais para a plena cidadania. A prática da escrita entra em colisão com a forma como os corretores ortográficos e os aplicativos para aparelhos de celular (para quem tem, óbvio, pois ter um aparelho é um luxo em um país desigual) transcrevem o que se fala no “microfone do teclado” e até traduzem para outra língua, se a escrita estiver correta. Estes dispositivos tornam a prática da escrita correta comprometida, pois resolvem e “facilitam” o que você quer escrever, corrigem palavras automaticamente, te dão opções de escrita correta e, ao final, quando a pessoa depende de uma caneta ou um lápis, até a assinatura já se transformou.
Ao mesmo tempo, como ouvi uma vez o poeta Jessé Andarilho dizer, no documentário “Tá no Ponto”, nunca se leu tanto, pois o volume de mensagens que a população lê nos celulares, desde mensagens curtas de chats até os outdoors e propagandas nas longas jornadas casa/trabalho/casa, é uma forma de literatura. Em meio às citações e links, se consome muito texto. Mas é, ao mesmo tempo, uma literatura ágil, nem sempre lida por completo e, em casos mais recentes e presentes, repletas de desinformação. O que não muda é a determinação e a vontade do leitor, sendo bom ou não tão bom escriba, em expressar-se através de letras.
Sempre admirei os pichadores com técnicas de escrever de cabeça para baixo e ao contrário suas marcas ou frases, em função dos locais e sua dificuldade no acesso. Falo isso como um educador que percebe que o que estimula um jovem a deixar sua marca ou sua ideia numa cúpula de uma igreja — onde tanto se ensinou sobre Cristo aos fiéis analfabetos educados por imagens — ou na base de um viaduto, ou nas paredes externas de um prédio, nem sempre se manifesta nos cadernos escolares, o que pode ser algo que falta nos governos e em suas políticas educacionais, fazendo respingar na sala de aula. E falando sobre viadutos, as mensagens do Profeta Gentileza, com seus erros gramaticais e falta de pontuação, se tornaram referência entre a intelectualidade, de tal maneira que se apropriaram das frases, do grafismo, do sentido, com ou sem erro.
Já tentaram justificar os “erros eleitorais” por quem pratica erros gramaticais. O último intelectual de formação a assumir o comando não elegeu sucessores, mas seus erros nunca estiveram na qualidade da escrita. Seus sucessores, com ou sem formação, erra(va)m no português, mas cada qual em sua dimensão soube mais ou menos se comunicar com a população de uma maneira como não se fazia antigamente.
Como já mencionei, com imagens para compensar a não leitura do livro sagrado, imaginaram um Deus para os fiéis. Já se rezou missa em outra língua, como uma assinatura de sabedoria, mesmo que a população sequer se expressasse corretamente na própria língua, segundo quem determina o certo e o errado. E o poder tem transitado nas mãos de quem fala a linguagem do povo. Os juízes martelam sentenças onde a balança da justiça, em algum momento, possa ter dois representantes que não têm o vocabulário “erudito”. Por vezes, nem mesmo o juiz sabe se referir a uma parente próxima de forma correta, muito menos em seus processos.
O uso da escrita só está errado quando quem escreve não tem poder para estar certo. E quando todos estão fragilizados por uma pandemia, o discurso acessível e popular pode tomar outras conotações. Se existe certo e errado, vira a escrita errada da forma errada. Ou, como diria Lélia Gonzales, para escurecer alguns fatos: “E logo pinta a pergunta: Como é que pode? Que inversão é essa? Que subversão é essa? A dialética do Senhor e do Escravo dá pra explicar o barato.”
A aceitação do erro, no papel, na tela e no discurso, tem cor. O acerto também goza da mesma preferência. O erro não pode ser assinado pela “pessoa errada”. O errado é uma questão de perspectiva e cabe aos errados não empoderados nivelarem essa ótica e determinarem, como sempre foi, o peso de sua contribuição em cada palavra utilizada pelos “vencedores”, para escrevê-las em língua padrão. Se a língua existe e está em permanente transformação é porque a maior parte de seus praticantes exigem renovação.
E a renovação traz uma esperança por um diálogo escrito e falado comum.
Uma vez Cora Coralina escreveu: