OPINIÃO

 

 

Por Paolo D’Aprile

 

 

(Ma voglio di più di quello che vedi, voglio di più di questi anni amari. Mas eu quero mais daquilo que está vendo, eu quero mais que esses anos amargos – Pino Daniele)

Corpos deformados em massa de suor, na espera de agarrar-se a outros corpos em ônibus de todos os subúrbios, onde a palavra “fim” não existe, onde a chantagem do patrão e o espectro da fome impõem a inexorável lei do silêncio: o meu povo morre. 400 mil pessoas já morreram. Quantos mais morrerão?

A nova normalidade de uma ordem que nunca é nova, mas eterna, fundadora de um implacável nexo lógico que anuncia ao mundo a verdade real: nada de democrático tem o vírus que veio para exterminar os pobres, nada de democrático tem a catástrofe histórica que caiu sobre os corpos humilhados nos ônibus e nas favelas, onde a mosca e o verme sempre ganharam todas as guerras, onde até mesmo as cores de Van Gogh vivem em cinzenta monotonia, e o tormento de todas as emoções é anulado na experiência da opressão de cada dia.

Meu povo morre, sob as ordens de um líder, que pronuncia a palavra morte tão banalmente como pronunciaria qualquer outra. Meu povo morre, na suprema negação de sua própria morte, quando é convocado ao trabalho, aos bares, aos shoppings, para salvar uma economia que nunca lhe pertenceu e nunca lhe pertencerá.

Onde a voz humana se esgota em si mesma, onde o grito de mães, esposas, filhos, pais, não serve mais, onde até mesmo a angústia de hoje soa falsa: meu povo morre, corpos e mais corpos aos milhares, todos os dias. O tempo abstrato do infra-humano impõe seu peso esmagador sobre a cabeça que instintivamente luta para permanecer à tona, mas vive se extinguindo no derradeiro latido.

Naufragado nos imensos subúrbios de lama, meu povo morre. E aqueles que morrem já estão mortos em seu respeito próprio, em sua dignidade, os corpos amontoados no ônibus que nunca chega, respondem à chantagem, sem mais nada a temer, nem mesmo os golpes, as feridas, a febre, o ar que se acaba, as filas no pronto-socorro, o hospital cheio, as valas comuns na terra nua. Aqueles que morrem já estão mortos e enlouquecidos. E basta chamar um louco de “Majestade”, para ele acreditar que é Napoleão, o Papa, o Rei. É assim, é desse jeito que meu povo morre, zangado, teimoso, ferozmente submisso. E nem pode mais chorar, seus olhos viscosos como baba de lesma, mariscos secos, não choram mais.

Simplesmente morre: números, estatísticas e silêncio. E nos abandonamos, no embalo da imensidão de uma doce onda, para falar de fome, desemprego em massa, barracos miseráveis, massacres em carne viva, abandono. E quando os mortos comerão os vivos, talvez os poderosos do mundo tomem consciência do meu povo: talvez.

Nós, que fomos os imperadores da metáfora, das alegorias, os sultões de todas as hipérboles de um mundo barroco construído como vontade e representação do mito de uma convivência cívica e de um pacto libertário, agora temos o gosto de sangue na boca e o fedor da tragédia da existência que vem cobrar seu inexorável tributo de vidas humanas.

É uma infelicidade totalizante, um desastre tão abominável que parece abstração: a banalidade do mal. E neste mundo tão rico, apodrecido pelo peso de seu próprio sonho, somos deixados a rastejar como os sobreviventes de uma carnificina de matinê dominical, arrastando-nos para uma vida de merda, esmagados pela indiferença das multidões.

Nossas palavras, anunciadas feito possibilidade tangível, voltam como advertência insuportável: “Eu avisei, eu avisei”… Mas agora sabemos, aprendemos a pauladas e cusparadas na cara: a história não precisa do passado, a história é construída sobre nós, e aqui, hoje, a presença se torna ausência, como uma foto na qual você não está, como a memória de outra pessoa que não é você, que não sou eu, que não é nenhum dos corpos amontoados na estação de metrô, como uma máscara inútil, como um vírus, um verme, como a mosca que venceu todas as batalhas: preso no terror de nós mesmos, o existir-para-o-outro, o viver-para-amar, desvanece para sempre. Nós nunca mais voltaremos para casa. A casa dos homens foi destruída, definitivamente destruída.

“Não há nem mesmo uma mosca em Milão?”

“Não, nem mesmo uma mosca. Nós os matamos a todos. É higiênico, você evita infecções, doenças”.

“Também em Nápoles, de fato, nós combatemos as moscas”.

“Então por que ainda há tantas moscas em Nápoles?”

“Sabe como é, meu senhor: as moscas ganharam!”

(Curzio Malaparte – Kaputt)