CRÔNICA
Por Guilherme Maia e Paolo D’Aprile
Zemzedkat shildehvd / Zemzemnat shidliuoz / So zebaaait bèmessé / Ehintsil isnious / Mámo méhève / Papoi met ève / Bat gooot pless ze chaîld déese gotison / Désgotison…
Há certas melodias, certas harmonias que doem. Que fazem mal.
Espinhos cravados, machucam o fundo do ser, escavam por dentro, roem as entranhas e te deixam nu, para que a verdade venha à tona. Elas vão até onde ninguém foi, onde não foram convidadas, vão porque ninguém as convidou. Elas simplesmente vão, porque são capazes de ir.
Quando o desespero se transforma em canto, nunca está onde deveria, mas foge nos interstícios siderais do espaço da maior música que voz humana já cantou, revelando um anti-canto, uma anti-música, além do canto, além da música, no campo imediato da expressão de individualidade, porque Billie enxerga a coisa que ninguém vê, que ninguém pode sequer imaginar. Entra nas notas, foge delas pelas vísceras da antimatéria, do outro lado do buraco negro que tudo engole. É um tapa nos bons sentimentos, um soco da boca do estômago do amor, é gelo em brasa viva. É o ab-surdo no seu sentido etimológico: o nunca ouvido. É a palavra dividida em cada sílaba, é a letra mastigada em sons onomatopaicos para ouvir com a parte interna da pele, é o partir para o infinito, para o nunca mais, e descobrir que esse mesmo infinito cabe na palma da minha mão. Na apoteose silenciosa do canto humano, feita de recortes, suspiros, sons cobertos de timidez, Billie Holiday é a antítese de qualquer cantor ou cantora, a antítese da própria música. Ela é palavra musical, sensibilidade exasperada capaz de fragilizar sua própria alma até o insuportável e se tornar pequena, insignificante, inútil estorvo, abominável fardo digno de ser jogado no quarto de despejo da existência.
Sua trágica vida encharcada em álcool e afogada em drogas, transformou sua voz na orquestra arranhada dos sentimentos, debruçada no languir de toda hipocrisia, findou, deixando-a completamente só, abandonada até por si mesma como a pior de todas. Billie Holiday, a pior de todas. Billie Holiday, a maior cantora de todos os tempos.
Them that’s got shall get / Them that’s not shall lose / So the Bible said / and it still is news
Mama may have / Papa may have / But God bless the child that’s got his own /
That’s got his own…
Introdução por Paolo D’Aprile
“O estranho fruto pendurado do cimo da árvore”. Assim, direto no estômago é a alegoria do negro morto enforcado num galho após uma sessão de contínua de espancamento perpetrada por “bons homens cristãos brancos”. Strange Fruit entrou para o estelar repertório da Billie Holiday em junho de 1956 no LP Lady Sings the Blues da gravadora Verve.
A parte: essa gravação somente poderia ser executada na Verve de Norman Granz, um grande cara que enfrentava o racismo sem medo e um dia vale a pena escrevermos aqui sobre como lutou pela Ella Fitzgerald (ele e a Marilyn Monroe… Interessante!).
Registrada na WMGM’s Fine Sound Studios*, em Nova York (vá lá por nós Marco Da Costa e deixe uma rosa na frente do prédio!). Contou com os deuses do jazz: Charlie Shaves (trompete); Tony Scott (clarineta); Wynton Kelly (piano); Paul Quinchette (saxofone tenor) e, confesso que me surpreendi: Kenny Burrel na guitarra, – ele que é um gênio e ainda está por aí no planeta Terra.
Compondo com o forte a clamoroso solo inicial de trompete de Charlie Shaves, os acordes finais de Kenny Burrel emolduram de matéria feérica o lamento da Billie Holiday.
Assunto triste e que se expande dos maus-tratos aos negros do Sul estadunidense reacionário e segregacionista até aos indígenas e agricultores sem terra na América latina.
O escravagismo tem várias faces e a Billie Holiday escancara a realidade de uma de suas manifestações mais horrendas.
A música é de autoria de Lewis Allen – pseudônimo de Abel Meeropel, – judeu professor de um colégio no Bronx, inspirado ao saber do linchamento de dois garotos negros no Sul. Esta obra-prima que está no Hall da Fama do Grammy, desde 1978, além de inscrita na lista de canções do século da Recording Industry of America e da National Endowment for the Arts. Tudo isso, claro, pelo canto da Billie Holiday.
Billie passou a cantar Strange Fruit em todas as suas apresentações.
Toda a beleza sonora desse pássaro de canto acolhedor veio dos anos 30 com um senso de tempo perfeito, época em que Lady Day (apelido dado pelo seu compay Lester Young – que também merece umas linhas de resenha aqui, pelo amor de deus!) optava por músicas pop rejeitadas pelos cantores de sucesso comercial. Resultado: ela “vestia” as canções com sua persona encantada de diva eterna e a canção se transformava em um standard.
Desse tempo para 1956, muita coisa se passou na vida de lady Day e eu sempre pensei ser insuficiente ficar expondo intimidades para chamar a atenção. Billie não precisa disso e nunca precisou.
Explico: quando li o “Memórias do Século XX” do Ruy Castro (excelente escritor e biógrafo de mão cheia), não gostei por este grande intelectual de nossas letras ter caído na armadilha da fofoca sobre drogas e homens violentos que a espancavam devido a um suposto “masoquismo” no capitulo em que ele fala sobre Billie.
O que quero dizer é que independente dessas coisas, em 1956, Billie tinha uma vivência que plasmou sua voz com nuances mais reflexiva e rascante.
Charlie Shaves com seu trompete cortante vem e faz a introdução que vai resultar no derrame da existência da Lady Day, porque ela comunga da imolação daqueles negros pendurados, absorve as dores e declama uma das poesias mais belas do mundo!
Poesia pela voz, no sentido de ser um amálgama onde o instrumento vocal sobressai em uma releitura mais profunda do que as letras permitiram ao Abel Meeropel. Aquela emissão de sons da Billie Holiday nos leva a Wittgenstein e os limites da comunicação.
No Tractatus Logico-Philosophicus, sentença 4.014, nos diz o autríaco: “o disco da vitrola, o pensamento e a escritas musicais, as ondas sonoras estão uns em relação aos outros no mesmo relacionamento existente entre a linguagem e o mundo. A todos é comum a construção lógica”
Oras: pensamento e linguagem formam uma só coisa; o pensamento é feito de proposições complexas que ligam signos a nomes de objetos; enquanto que a linguagem tem por função dizer-mostrar a realidade; por isso é impossível reduzir a expressão em forma lógica comum da realidade e da linguagem. Têm em comum a forma lógica, mas algo escapa entre realidade e a linguagem- e é exatamente isso que escapa à capacidade do ser humano em decifrar o todo da realidade é que faz com que não possamos simplificar aqui onde escrevo o que é a relação da voz da Billie Holiday com o significado dos versos de Strange Fruit.
Apenas sei que se fosse qualquer outra pessoa na face da terra cantando esta canção, jamais teria o alcance e a expressividade que Billie imprimiu na sua interpretação!
Pena que os Donos do Poder são surdos e imprestáveis. Até hoje não entenderam o que significa a condenação que os espera na História e no Espírito.
*Orientações geográficas para Marco da Costa: o antigo WMGM’s Fine Sound Studios (onde Billie Holiday gravou esse clássico e onde Count Bassie, Johnny Hodges, Gerry Mulligan, Max Roach, Clifford Brown, Clark Terry, Roy Eldridge, Sarah Vaughn, Dinah Washington gravaram e onde Miles Davis registrou Birth of the Cool) fica na 711 Fifth Avenue NYC (hoje é mais um prédio da Coca-Cola – fazer o quê? Na opção dada “socialismo ou barbárie”, a escolha foi a segunda…).