Para a Ordem dos Médicos (se é que ela existe), quase quatrocentas mil mortes não são suficientes. O boicote sistemático, a sabotagem ativa contra todas as medidas preventivas, contra a compra de vacina e sua distribuição, atitudes essas encarnadas na pessoa física do presidente da República, não causaram sequer uma simples nota de repúdio, nada. A classe médica conivente, testemunhou a ruína do País e a tragédia humanitária provocada por Bolsonaro, sem reagir, sem defender a população, e, com seu silêncio cúmplice, escondeu-se por trás do princípio da ética profissional, que permite ao médico aplicar ao paciente o tratamento que considere o mais apropriado, sem negar as fake news com que fomos bombardeados nesse longo ano.
Prescrições de vermífugos, aplicações retais de ozônio, infusões milagrosas de ervas, tratamento precoce, cloroquina…. A lista é longa. E enquanto hospitais em todo o Brasil entraram em colapso, a Ordem Nacional dos Médicos (se é que ela existe), reforçou sua aliança com o bolsonarismo, continuando a fazer o que sempre soube fazer de melhor: nada. O ditado diz que se um nazista sentar à mesa com dez pessoas e ninguém se levantar, nessa mesa haverá onze nazistas. E a ela que envio meus insultos, à Ordem Nacional dos Médicos (se é que ela existe). Certamente não aos meus colegas e amigos que vejo se desdobrarem e arriscarem suas vidas nas enfermarias apenas para tornar os últimos momentos dos pacientes, os mais dignos possível.
Giorgio Gaber, grande ator italiano, cantava: “Os burgueses são todos uns porcos, quanto mais gordos, mais sujos são; mais sujos são e mais ficam ricos, os burgueses são todos uns merd…”
Burguês. Patrão. Não é para ter medo dessas palavras. Os patrões existem realmente. E como os monstros dos contos de fadas, eles não hesitam. Se querem te comer, comem; se podem te machucar, machucam. Os patrões. Desde os banqueiros, os industriais, até o dono da venda aqui na esquina. Os patrões. Aqueles que sempre protestaram contra as medidas de isolamento social para evitar aos trabalhadores se amontoarem em ônibus que, como os novos navios negreiros, levam a população para o abate. Os patrões, aqueles que apoiam e financiam o bolsonarismo e que, através dos seus representantes parlamentares, se opõem ao máximo à libertação do auxílio emergencial: a esmola institucional capaz, segundo eles, de arruinar os cofres do Estado. Duzentos e cinquenta reais. E agora façam-se as contas, por favor: Um euro vale seis reais. Duzentos e cinquenta reais, um pouco mais de quarenta euros. Quarenta euros por mês, para quem perdeu tudo.
Os patrões, apoiadores de todo o autoritarismo, financiadores de ditaduras, colaboradores (e por vezes organizadores) de massacres e torturas, diretamente responsáveis pelo desmantelamento do sistema legal e sindical que protegia os trabalhadores; os patrões, responsáveis pelo desastre de saúde pública através da formação de companhias de seguros privados em grande parte financiadas pelo Estado cúmplice, pois bem, os patrões escreveram e publicaram, para todo mundo ler, um documento contra a pandemia. Mil e quinhentas assinaturas pedem medidas mais eficazes contra a pandemia porque, dizem, estamos no limiar de um momento explosivo.
Depois de afirmar o óbvio, entram diretamente no seu tema favorito: a recessão não será superada, a não ser por uma ação competente de controle da pandemia, por parte do governo federal, que, por sinal, utiliza muito mal os recursos à disposição, ignorando a ciência. Aqui estão os patrões, mil e quinhentos banqueiros, industriais, empresários, homens da bolsa, especuladores, malandros com gravata e capital e outros porcos dessa laia assinando a carta. Dizem que estão preocupados com a recessão. Na verdade, a razão é bem outra. Estão assustados, acuados, com medo. Estão literalmente se cagando. Sim, eles estão se cagando de medo.
Descobriram que seus hospitais privados ficaram sem leitos, sem camas, sem macas, sem oxigênio, sem remédio, sem vaga. Um deles teve a pachorra de choramingar: “eu teria o dinheiro para comprar um hospital inteiro, mas não consigo encontrar uma vaga para a minha mãe”. Os bastardos estão assustados. Eles sentem o sopro pútrido da morte no cangote, como sentimos nós a cada vez que subimos no ônibus e no metrô para ir trabalhar para eles. Eles têm medo.
Agora que não podem fugir para Miami ou Paris porque não os deixariam entrar, escrevem cartinhas exortando o seu governo a tomar as medidas que deveriam ter sido tomadas há um ano atrás. Nenhum deles diz na cara do Bolsonaro que quando a Pfizer ofereceu ao Brasil prioridade na compra de oitenta milhões de doses, ele recusou. Nenhum deles esfrega na cara do Bozo suas próprias palavras: “já mandei cancelar, o presidente sou eu não abro mão da minha autoridade”. Ninguém repudia suas escolhas, ninguém diz abertamente que seu voto de 2018 levou o país ao desastre.
A carta aberta que os patrões escreveram a Bolsonaro e a nação, é o símbolo da classe dominante que, para se salvar, faz agora qualquer coisa, chegando ao ponto de ameaçar veladamente o monstro que alimentou durante todos estes anos: o presidente da Câmara, falando do seu púlpito, afirma que “o parlamento não poderá tolerar novos erros, caso contrário o remédio será certamente amargo, talvez fatal”.
Eles têm medo, os patrões têm muito medo. Mas quem continua se expondo todos os dias, apinhados como animais, amontoados, vulneráveis, suados e resignados, somos nós. Quem vai trabalhar para eles, somos nós. Até quando?