Escrito por Dra. Lisa McKenzie – A Dra. Lisa McKenzie é uma acadêmica de classe popular. Ela cresceu em uma cidade mineradora de carvão em Nottinghamshire e se politizou, com sua família, durante a greve dos mineiros de 1984. Aos 31 anos, foi para a Universidade de Nottingham e graduou-se em sociologia. A Dra. McKenzie leciona Sociologia na Universidade de Durham e é autora de “Getting By: Estates, Class and Culture in Austerity Britain”, ainda sem tradução no Brasil. Ela é ativista política, escritora e pensadora. Acompanhe-a no Twitter @redrumlisa.

A reação bem ensaiada à morte do duque de Edimburgo tem sido um exercício engenhoso na propaganda da elite e um lembrete deprimente de que a natureza hierárquica de nossa sociedade resulta em profundas desigualdades em todo o mundo.

Se tirarmos a morte de um homem idoso, marido, pai, avô e bisavô da equação, fica claro que a última tenda do circo real a ser montada na cidade – a morte do cônjuge da Rainha – tornou-se provavelmente a maior e mais perfeitamente organizada propaganda que a elite britânica, apoiada por um elenco de elites globais, já conseguiu.

Não estou muito interessada no duque de Edimburgo. Na verdade, não estou nem um pouco interessada. Raramente pensei nele durante a minha vida – mesmo quando ele dizia as coisas mais bizarras e ofensivas, ou quando batia com seu Range Rover aos 97 anos, dediquei a ele um pouco mais de tempo do que a qualquer estrela de reality show que os tabloides cobriam na época.

Essa relíquia mimada de outra época, que fazia parte de uma dinastia sombria, não tinha nenhum conhecimento sobre a vida de um plebeu. E por que deveria ter?

Mas, cada vez mais e de forma alarmante, percebi que estava enganada ao descartar suas artimanhas e as da realeza em geral, como se fossem fofocas comuns sobre celebridades, quando, na realidade, a instituição da família real britânica ainda exerce poder significativo, como tem feito durante séculos, tanto no Reino Unido quanto no mundo inteiro.

Nos tempos modernos, essa influência tem sido ofuscada, principalmente, pela visão comum de que a função da família real no mundo é muito mais sobre pompa e decoração do que poder político verdadeiro.

No entanto, a quantidade de poder que a família exerce tem sido evidente desde a morte do duque de Edimburgo. Tudo começou com o fechamento da BBC. A emissora nacional da Grã-Bretanha cancelou sua programação em seus canais de TV e estações de rádio locais e nacionais.

Em vez disso, assistimos a jornalistas vestidos de preto relatando fatos sobre a morte, intercalados com destaques da vida do duque. Clipes e depoimentos pré-gravados foram mostrados ao longo de cada destaque de seus 99 anos. A narrativa foi bem ensaiada: o duque era um refugiado, deixou a Grécia em uma caixa laranja, foi abandonado por seus pais, usou suas incríveis habilidades de liderança para superar as dificuldades iniciais de sua família enquanto estava em Gordonstoun, uma escola de elite para meninos, e mais tarde se tornou um herói lutando contra os nazistas na guerra.

Ele se transformou no verdadeiro feminista quando se casou com a então princesa Elizabeth, tornando-se o homem de família perfeito, que apoiava a monarca e a família real de forma altruísta, e mais tarde evoluindo para um grande ambientalista.

Esta narrativa é inteligente, mas dissimula perfeitamente as rachaduras de um sistema de classes britânico que reproduz vantagens injustas para alguns e desvantagens igualmente injustas para outros e que tem sua origem na família real.

Esse sistema de profunda desigualdade, globalmente aceito e que passa, em sua maioria, sem críticas ou comentários a respeito, tem sido um modelo para que as sociedades hierárquicas prosperem, com a injustiça justificada pela ilusão da democracia.

O poder direto e brutal que vimos no passado foi substituído por um poder muito mais bem-sucedido: o poder simbólico – ou a ilusão de que existem humanos, indivíduos, grupos e famílias que são inatamente superiores. Esse truque garante a existência e a legitimidade das camadas de elites que possuem poder, riqueza e excepcionalismo às regras e leis com as quais o resto de nós tem que conviver.

E isso não é apenas no Reino Unido. A reação das elites de todo o mundo à morte do Príncipe Philip confirmou que as estruturas que produzem e reproduzem estas camadas são globalmente reconhecidas e conectadas.

Os chefes de estado, na maioria dos países, contribuíram para a narrativa do “duque extraordinário”, descrevendo-o como alguém quase super-humano e, no entanto, reconhecível em nível humano (nenhuma das afirmativas parece ser verdade).

Políticos de todas as cores e convicções alinharam-se para cimentar e legitimar a narrativa. Líderes empresariais, chefes de instituições de caridade, organizações sindicais e membros da super elite, como os ex-presidentes dos EUA, Obama e Bush, enviaram elogios extensos, unidos em sua mensagem de que ‘todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros’ .

Esta narrativa foi então cinicamente filtrada pelas ruas da Grã-Bretanha, com outdoors eletrônicos, por exemplo, mostrando a imagem do duque. Foi a demonstração perfeita de como a elite global usa a propaganda e o poder simbólico para manter sua legitimidade      e como os expôs àqueles que lançam um olhar crítico e inédito sobre a sociedade.

Mas, independentemente do quão astuto e bem preparado tudo isso foi, a propaganda da elite não passou pelo público britânico de forma tão perfeita quanto, talvez, pudesse ter passado. Até agora, a BBC recebeu um recorde de 110.000 reclamações sobre o cancelamento de sua programação regular e a cobertura completa da morte de um homem de 99 anos.

Isso foi um grande passo em falso? Acho que não. Essa é a boa e velha propaganda do Estado. As reclamações sobre a cobertura não impediram o governo de chamar o parlamento um dia mais cedo para prestar homenagem ao duque de Edimburgo. Políticos de todos os lados da casa esperaram sua vez de repetir a narrativa nacional e internacional – justificando por que há pessoas no mundo que chamamos de elites globais, para as quais as regras estabelecidas para todos os outros não se aplicam.


Traduzido do inglês para o português por Marcella Santiago / Revisado por Elisa Dias da Silva