CRÔNICA
Por Marco Dacosta
Não chore não vovó
Não chore não
Veja quanta alegria dentro da
Recordação
(Beija-Flor, 1977)
Em toda minha vida, só um ano não teve carnaval. Não há como não refletir sobre o impacto dessa festa – e da ausência dela – em mim.
Na infância, eram os sambas enredo que me explicavam tudo que existia ao redor: “A criação do mundo segundo a tradição nagô”, “Brasil berço dos imigrantes”, “O mundo de barro de Mestre Vitalino” – foram os meus livros de história. A cada ano, temas fantásticos, que me apresentariam um Brasil cheio de magia e beleza, mesmo que silenciado por uma ditadura violenta e que nos impunha censura. Foi nos carnavais do final dos anos 70 que entendi sobre as minhas origens, meu povo e meu senso de pertencimento ao país. O canto invadia a avenida decorada com grandes luminárias coloridas e se convertia na grande ópera que me fazia, ainda criança, em frente à televisão, a levantar as mãos aos céus, de alegria e êxtase. Não conseguiria imaginar aqueles anos sem o rodopiar das baianas e o jato do lança perfume. As rodinhas de serpentina voavam das minhas mãos como se fosse a teia do homem aranha. Posso ainda sentir o cheiro da máscara de bate bola e o ruído da bexiga estalando no asfalto.
A experiência de não poder vestir uma fantasia e sair dançando pela cidade só foi vivida antes na família por minha bisavó – e foi na casa dela, por coincidência, que passei os melhores momentos carnavalescos da minha vida. Em 1918, quando a festa foi interrompida por uma pandemia, ela, a jovem Iracema tinha apenas 23 anos e acho que por essa memória trágica da festa interrompida, sempre fez questão dos bailes familiares. Como depois de um inverno profundo, a primavera veio mais forte – o carnaval de 1919 foi regado a alegria e amor à vida.
Minha mãe, a primeira neta de Iracema, está eternizada ao seu lado em uma fotografia de outro carnaval interrompido, de 1943,em plena guerra mundial. Arlete estava fantasiada de baiana e brincou alegremente nos fundos de sua casa em São Borja, no Rio Grande do Sul.
Ao contrário de minha mãe e avó, meus carnavais foram carioquíssimos.
No dia dos desfiles na rua Florentina eu jogava confete sobre seu corpo e ia para a calçada assistir as pessoas passarem fantasiadas. Com certeza, devo a ela essa alegria represada pelos carnavais que foi impedida de dançar, seja pela pandemia ou pelas guerras. Ao seu lado assisti todos os grandes desfiles pela TV da época, amanhecia ao seu lado, exausto da longa noite. Inesquecível as manhãs de carnaval, quando ganhava uma revistinha com os sambas enredo e ficava horas no quintal decorando as letras para acompanhar o desfile da noite seguinte.
Uma das lembranças dos quatro dias de folia que tenho é um quintal vazio, cercado de árvores e um paredes pintadas com cal. Nos fundos de uma casa de Iracema, em Cascadura, preparávamos para a festa a rua, quando dançávamos ao redor do coreto e seguiríamos os grupos fantasiados que subiriam as ladeiras do bairro.
O calor anunciava os dias de folia, asfalto quente, respiração abafada pela máscara de papel marchê, com cheiro de gesso e com olhos que me deixavam ver o mundo melhor. São lembranças fragmentadas, açucaradas pela memória dos batuques ao anoitecer, dos ensaios do bloco que ficava nos fundos da casa. O pequeno grupo chamado “arrastão” virou escola de samba, mas ainda lembro das baianas – eram apenas umas cinco senhoras negras, carregando uma bandeja de comidas, rodopiando. Posso – se me esforçar – lembrar do cheiro de alfazema que vinha das suas fantasias bordadas.
Pela manhã, no sábado de carnaval, comprávamos bexigas para completar nossa fantasia de bate-bola ou morcego. Estávamos no início dos anos 70 e a zona forte fervilhava no carnaval de rua. Meus primos mais velhos desfilavam orgulhosos no “Cacique de Ramos” e arrumavam brigas com o “Bafo da Onça , outro dos tradicionais blocos da cidade. Meus olhos brilhavam quando aquelas centenas de índios e índias apaches cruzavam a rua em direção à estação, de onde saíam os trens lotados para a Central. As escolas de samba na época ainda não tinham virado atração principal e os blocos reinavam nos quatro dias, arrastando multidões.
O carnaval também tinha cheiro de bexiga de boi pendurada no varal para secar, de máscara de gesso e jornal, de roupa de baiana arrastada no asfalto. Eu, ainda menino, seguia com meus olhos pela grade do muro as tribos do cacique descendo a ladeira. Ramos era minha praia, literalmente, de águas ainda limpas, para onde íamos em ônibus lotados com uma bolsa de sanduíches de pão com ovo, limonada e café. Era um inferno as longas filas em Olaria, os corpos suados e salgados, salpicando areia nos assentos, mas em nenhuma época posterior ir a praia seria tamanha aventura. Assim como o Cacique, Ramos foi morrendo aos poucos até virar somente lembrança.
As crianças não viam o Cacique passar. Era muito tarde e longe para nós. Só via no dia seguinte, grupos apaches dispersos, alguns contando na padaria, antes de chegarem a casa para dormir, dos amores perdidos na Rio Branco, dos beijos e de uma fogueira e salta. Por anos imaginei que os índios cantam e dançam em torno dos fogos, tremulam bandeiras. O povo parece gostar, as novas gerações compram roupas e camisas e entram nas alas e bateria. Quando eu era criança o bloco chegou a ter 10 mil participantes e depois foi caindo, junto com o carnaval de rua e quase desapareceu nos anos 80. Se morresse, levaria boa parte da história do carnaval – e por que não dizer, minha também.
E a história não parou de brotar em meus cadernos da infância: com “Lendas e mistérios da Amazônia” aprendi sobre o boitatá, Em “Sonhar com rei dá leão” a história do jogo do bicho, o antigo zoológico que ficava na Vila Isabel – “O amanhã” me fez imaginar o que seria o futuro – e acreditei que o mundo seria em 2001 um ziriguidum no espaço, como cantava a Mocidade. Jamais imaginei, no entanto, que viveria o mesmo que minha bisavó Iracema, proibida de jogar confetes nas ruas por conta de um vírus mortal. “De lá pra cá. Tudo se transformou. Mas a vitória da folia ficou” – ah aquele samba. O carnaval não acabou – será sempre um sonho no verão. E voltará mais forte.
Hoje, olhando sua foto naquele início de século triste, canto baixinho e com esperança o enredo da Beija Flor de 78, que ela gostava tanto: ” E vinha um rei, num belo carro naval…Alegrando a saturnália..Inventando o carnaval”