CONTO

 

 

Por C. Alfredo Soares

 

 

Trabalhar foi sempre o verbo conjugado com os braços suados naquela fazenda. Salvador, um filho de escravo alforriado, trabalhava  sob sol e chuva na lida diária. O mesmo ofício do pai e da mãe.    Os dois se foram cedo pro céu, assim como tantos outros que não aguentaram tamanho esforço dia sim e o outro também.

A gente do lugar tinha o mesmo tom de pele que ele, e uma alegria, que a princípio parecia inconsequente.

Assim como Salvador, habitavam as casas de sape, margeando a estrada que levava ao terreiro grande de terra batida da sede.

Pra aliviar, Salvador se juntou a Maria e tiveram filhos, muito filhos pra ajudar na roça de cana e melhorar a renda, consequentemente renovando a força de trabalho barata que o senhor da fazenda tanto gostava.

Seu Jacinto Silva,  dono de tudo, também era dono da venda, onde todos penduravam as compras de mês – não à toa, todos ali eram “Da Silva” – quando o dinheiro da safra saia,  e cada chefe de família ia receber,  todo conto de réis ficava lá pra honrar as dívidas, preenchidas a lápis num caderno,  renovando o crédito que aprisionava o homem que tinha muitas bocas a alimentar.

Contrariado, Salvador confessou a Maria que queria, merecia mais e convenceu ela pegar as crianças e irem embora. A vida ali num prestava pra prosperar.

Salvador não aguentava olhar mais pra casa grande que simbolizava quem mandava e ver aquela gente sem coração, rindo alto e fumando charuto.

A casa tinha um alpendre que  circundava a morada.

A cumeeira alta se impunha de longe ver.

Ela tinha sido construída em tijolo maciço, com óleo de baleia,  e fora caiada de branco. Alva, como símbolo da pureza.

Sua chaminé fumegava o tempo todo.  Uma gente, que não se misturava, sempre que aparecia era pra comemorar, em banquetes boquirrotos, os acertos de compra e venda da safra futura e dívidas do passado.

Aos retintos, como bonus, um saco farinha e açúcar, que depois de vazios viravam vestes dos moleques.

Ai de quem reclamasse. Ninguém ali tinha direito a nada. Só deveres. Quem quisesse, podia pegar a trouxa e sair no mundo sem eira e nem beira.

Medo não batia dentro do coração de Salvador. Ele tinha orgulho dos seus antepassados. E ouvia o chamado ancestral. Sabia de cada história, que enchia seu peito de orgulho e coragem cega. Talvez por isso não pudesse mais esperar. Sabia do seu valor e o tempo das coisas acontecerem.

Maria apoiava seu homem, mesmo não sabendo bem como seria a vida noutro lugar. Confiava que melhor seria do que já havia vivido.

Ela tinha  parido seus filhos e, no parto de Zé Bento, seu temporão,  quase partiu. Seu grito de dor cortou  léguas. O mesmo acontecera com outras mulheres. Algumas não tiveram a mesma sorte. Só restava a mão boa das santas parteiras e a fé em Nossa Senhora do Bom Parto.

A panela, empretecida pela chama da lenha,  quase sempre quase cheia,  ressoava dentro do seu peito e punha lágrimas no olhar de Salvador. O banzo levara os homens a beber. Amigos seus, irmãos e primos apagavam as dores do corpo e da alma na cachaça barata. Um ópio possível que nem sempre adormecia o cabloco. Por vezes o fazia revoltado e seus filhos e companheira sofriam com tamanha dor. Morrer sempre foi uma opção para aqueles homens e mulheres. Salvador não sabia ler, mas fazia conta muito bem, controlava a turma no roçado.

Maria cozinhava muito bem e, também era boa de braço.

Juntos pegaram as crianças, e os poucos pertences, que cabiam numa trouxa, e se puseram a caminhar. Saíram logo cedo com a luz do dia e seguiram pro norte, onde tinha uma cidade próspera onde chegariam com a luz da lua.

As crianças exaustas e com fome, Maria preocupada com tudo e toda não podia demonstrar.

Salvador se sentia livre, mesmo sem lugar pra ficar. Um espécie de orgulho retido.

Tudo isso logo ali, a quilômetros da urbanidade.

Quando veio a decadência dos engenhos, a cidade se tornou o caminho natural. O roçado ficou pra traz. Não dava mais pra matar a fome.

Os filhos crescendo mereciam coisa melhor. Aquela gente rumou para a cidade.

Muitos por falta de opção, outros por ilusão.  Os subúrbios foram se adensando com aquela gente preta do trabalho duro e mãos calejadas. Se antes eles não tinham quase nada, ali talvez tivessem alguma coisa. Ledo engano.

– [ ] O cheiro do asfalto liso, amassado pelas rodas do desenvolvimento, aos poucos levou Salvador a dura realidade dos guetos, favelas, comunidades, subúrbios, onde essa gente sincera, verdadeira, era despejada todos dias, em ônibus lotados, com seus sonhos de excluídos, que até hoje creem em dias melhores. Com o diz o samba do mestre Wilson das Neves, lindo será “o dia que o morro descer e não for carnaval”.  Salvador e Maria venceram, mesmo vendo que ficaram aquém das suas possibilidades.