OLHARES
Por Clementino Jr.
Efetivamente, a infração lança o indivíduo contra todo o corpo social. A sociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele para puni-lo. Luta desigual: de um só lado todas as forças, todo o poder, todos os direitos. E tem mesmo que ser assim, pois aí está representada a defesa de cada um. Constitui-se, assim, um formidável direito de punir, pois o infrator torna-se o inimigo comum. Até mesmo pior que um inimigo, é um traidor, pois ele desfere seus golpes dentro da sociedade. Um “monstro”.
(Vigiar e Punir, Michel Foucault, 1975)
O isolamento social acaba, (in)voluntariamente, se tornando uma metáfora dos ambientes panópticos. Entre 4 paredes, ele mantém as pessoas separadas do restante da sociedade, mas, ao mesmo tempo, com um monitoramento constante, onde toda essa mesma sociedade sabe — e precisa saber — onde você está.
Panóptico — ou pan + óptico, algo como visão panorâmica — é uma estrutura arquitetônica criada por Jeremy Benthan, no século XVIII, onde um único vigia, que representa o poder naquele espaço, consegue vigiar todos os demais residentes no local. Foi concebido para os espaços penitenciários, mas utilizado também em hospitais, escolas e por aí vai.
A educação e a saúde têm o mesmo “olhar sanguinário do vigia” — como canta Mano Brown em “Diário de um Detento” — que os presídios têm, mas com outra espécie de controle. A viagem que proponho aqui é pensar como os residentes de um espaço panóptico podem estar lá, ou não, em consenso e como isso não difere tanto da vida daqueles que vêm se mantendo firmes no isolamento social, condicionados à vacinação ou ao fim da pandemia.
Os realities shows vêm tentando emular ou simular a vida real dentro das telas de TV, smartphones e computadores. Mas, não raro, eles levam para dentro destes espaços o que as famílias em isolamento mais sentem falta para além de suas paredes: os beijos, os abraços, a falta de higiene como algo habitual e os conflitos sociais mais visibilizados do que as omissões presentes na vida real.
Durante o mesmo período, relações que se previam privadas entre duas ou mais pessoas, se fizeram públicas diante de acusações de violências diversas, contra pessoas de diversas identidades de gênero, mas com a presença de celulares (in)volutariamente ligados, dando a quaisquer pessoas próximas o acesso a essas revelações, outrora presentes apenas entre quatro paredes. Se convencionou ao acusado de agressão — aqui, uso o gênero masculino, pois é, praticamente, a totalidade desses agressores; mulheres também estão na lista, mas não raro com alguma imunidade parlamentar — usar o argumento de que a violência entre quatro paredes não aconteceu, pois o ingresso dos dois naquele espaço foi consensual.
Consenso é uma palavra interessante, no sentido de que ela prevê anuência da totalidade ou da maioria das pessoas envolvidas, no momento de determinado ato, em um determinado local. Entre duas pessoas, só é consenso se as duas pessoas concordarem, ou se uma tiver tanto poder sobre a outra que não seja possível discordar. Em estupros em um quarto de hotel ou motel, a vítima tem uma desvantagem para a denúncia, pois, para a sociedade, é consenso que quem entra com outra pessoa em um quarto privado já está ciente do que “está em jogo”. Pessoas que ingressam em um confinamento voluntário em um Reality Show, com todo um contrato pré-estabelecido para eximir responsabilidades dos gestores do entretenimento, sabem, em teoria, o que “está em jogo”.
O criminoso, quando se entrega à polícia — sim, isso é mais comum do que possamos pensar, mas mais raro do que o poder estabelecido gostaria –, já sabe que seu ingresso no presídio, aquele mesmo que foi pensado como uma escola ou hospital, o garantirá uma cela próxima aos seus pares e não aos seus rivais, pois todos neste sistema de controle previsto, sabem o que “está em jogo”.
A tal palavra emulação — popularizada na informática como forma de fazer um software de acesso livre simular as mesmas funções e recursos do que está protegido por copyright — tem a ver com a rivalidade onde se tenta equiparar dois elementos ou pessoas para uma mesma função. Aí penso no consenso necessário para uma vida em comum em um espaço fechado e a emulação onde os envolvidos querem “sair por cima” no custo-benefício de estar confinado naquele lugar. São os acordos que podem estar em papel ou não: regras óbvias pré-estabelecidas ou escritas, mas que são descumpridas. Reflexos do que acontece, efetivamente, além das quatro paredes.
Onde existir uma câmera, um microfone e alguma fonte de energia elétrica, o olhar panorâmico está ativo e, com isso, chegamos ao julgamento para além do vigia de olhar sanguinário, mas de grupos que, por vezes, tem o olhar, mas não a coragem de executar a possível punição. Daí que chegamos num outro consenso: o da sociedade livre, que pode olhar para o criminoso, para o confinado do reality, para o estuprador/amante do motel, para a vítima de violência do supermercado e, partindo de um olhar digitalizado e editado, dialogar com seus pares, em redes sociais igualmente segregadas e monitoradas, de que forma punir quem os incomoda.
Pode ser um representante ilegítimo de seu grupo ou um legítimo do grupo rival, mas a punição do que se vê institui a cada grupo um poder para criticar e interromper biografias, muito inferior aos grupos segregados ligados politicamente ao poder. Grupos que monitoram os demais e mexem com suas emoções, manipulando essas narrativas digitalizadas e expondo, em meio a uma guerra, o chamado “calcanhar de Aquiles” às flechadas. É consenso que, se você não está observando um alvo consensual, é porque você não domina o olhar panorâmico e é só mais uma pessoa observada.
Antes de apontar a flecha para o confinado, cuide para seu calcanhar não ficar exposto e visível.
Texto com revisão crítica de Tayna Arruda.