OLHARES
Por Paolo D’Aprile
Bolsonaro genocida.
Se o irmão do ministro da saúde fosse acusado de estupro. Se o processo estivesse atolado na papelada burocrática há décadas. Se as vítimas, menores de idade, o tivessem reconhecido. Se quando foram pegá-lo ele tivesse disparado contra a polícia do alto dos muros de casa. Se ele tivesse sido liberado no dia seguinte. Se ele fosse sócio do irmão general ministro da saúde em três empresas: uma companhia de navegação na bacia amazônica; uma concessionária de postos de combustíveis; uma empresa financeira. Se o irmão do ministro estivesse envolvido não apenas no estupro de menores, mas também em assassinatos e sequestros. Se o ministro da saúde fosse um general de divisão sem experiência no setor. Se o ministro fosse o direto responsável por boicotar sistematicamente todas as formas de prevenção e tratamento. Se sua atitude, suas declarações, suas iniciativas, suas omissões deliberadas, tivessem causado trezentos mil mortes. Se ele fosse dispensado de suas funções porque a base de apoio parlamentar tivesse finalmente compreendido a situação insustentável e, silenciosamente, para não dar razão a oposição, pressionasse para sua substituição. Se uma médica de reconhecida competência fosse chamada em seu lugar. Se tal médica, após longa conversa com o presidente, tivesse recusado o convite. Se ela declarasse publicamente sua incompatibilidade com o negacionismo presidencial. Se ela declarasse publicamente o perigo das ações governamentais na gestão da pandemia. Se a própria médica contasse na frente das câmeras de ter sido ameaçada pelas milícias. Se essas milícias tivessem tentado invadir o hotel onde ela estava hospedada, se tivessem ameaçado sua família. Se algumas horas depois o presidente tivesse convocado outro médico, um amigo pessoal e o chefe de uma importante associação de cardiologia, para preencher o posto do general – irmão e sócio de um estuprador. E se esse médico aceitasse o cargo com o único propósito de dar o aval institucional da ciência aos delírios presidenciais. E se o ministro general, em seu último discurso, afirmasse que o sistema de saúde não esteja sofrendo nenhum colapso assim como a imprensa propaga. Se os apoiadores do presidente tivessem organizado uma marcha a seu favor, uma longa procissão de carros em frente às entradas dos hospitais impedindo a passagem de ambulâncias e doentes. Se essas pessoas doentes estivessem morrendo as dezenas em salas de espera por todo o Brasil por falta de camas, estrutura e oxigênio. Se definir Bolsonaro como genocida resultasse em denúncia sob as regras da lei antiterrorismo, como aconteceu ao jovem “influenciador” Felipe Neto. Se em solidariedade a ele eu terminasse esta página com as mesmas palavras pelas quais ele foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional.
Bolsonaro Genocida.
Se eu escrevesse tudo isso, alguém acreditaria em mim?
No dia em que foi anunciado que em 67 cidades não existem mais leito de UTI o Tribunal de Contas da União, responsável pelo controle do orçamento do Estado, decidiu investigar e iniciou um inquérito contra as Forças Armadas. São acusadas de omissão, de não disponibilizarem sua rede sanitária de hospitais e médicos, são acusadas de não informar a quantidade de pessoal potencialmente disponível para ajudar no controle da pandemia. Três mil mortos por dia de uma doença para a qual já existe a vacina, mas que o governo recusou comprar no devido momento, e, através de palavras e atos concretos, se empenhou em uma verdadeira campanha de sabotagem, transformando o Brasil em ameaça global.
Desta vez não sou o único a dizê-lo, mas baseio minhas declarações num artigo do Washington Post, intitulado Brazil’s rolling coronavirus disaster is a threat to the world no qual realçam os erros das ações governamentais na gestão da emergência, falam do colapso dos hospitais e citam as palavras de Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS: se o Brasil não decidir abordar seriamente a situação, vai se tornar uma ameaça para todos os seus vizinhos.
O desejo do ministro das Relações Exteriores virou realidade: “Se a nossa política externa nos transformará em párias internacionais, bem, espero que isso aconteça o mais depressa possível”, declarou em outubro passado, referindo-se à luta do país contra “as forças comunistas que querem minar os princípios da civilização cristã sobre os quais a nação está fundada”.
O Washington Post informa que o número de testes é praticamente insignificante. Acrescento eu que sete milhões de kits para a realização dos testes foram abandonados em armazéns do exército ao ponto de ficarem inutilizáveis. O artigo no prestigioso jornal americano define o presidente Bolsonaro como “o incendiário da extrema direita”, e vai mais longe, afirmando que, sob a sua supervisão, o Brasil afundou-se no negacionismo, na desorganização, na apatia, no hedonismo e no charlatanismo médico”. Prossegue acusando o presidente e seus aliados de promoverem a desinformação, minimizando a ameaça do vírus e a eficácia das regras preventivas, tais como a utilização de máscaras, e o distanciamento social.
Até a BBC relata no seu website a catástrofe brasileira, fala da insuficiência de camas hospitalares face ao número cada vez maior de doentes, acusa Bolsonaro de se opor sistematicamente às medidas de quarentena propostas pelos governadores e prefeitos, dando prioridade à continuação das atividades económicas, cuja interrupção causaria danos muito piores do que os causados pelo próprio vírus.
The Guardian, o famoso jornal conservador britânico, pergunta-se o que aconteceu com Zé Gotinha, a simpática mascote símbolo da toda campanha de vacinação. The Guardian conta da tentativa do governo de transformar nosso querido Zé Gotinha num guerreiro, um miliciano armado de metralhadora disfarçada de seringa.
O ministro da saúde foi substituído. A mudança foi feita com base na continuidade. As palavras do ministro Pazuello, a respeito do colega sucessor não deixam dúvidas: “reza a mesma cartilha”.
Bolsonaro Genocida.