CRÔNICA
Por Marco Dacosta
A luz do sol entra lentamente pela janela do ônibus, vencendo a cortina. Estou em um Greyhound metálico, antigo, nem sei como ainda está em circulação. Me reviro na poltrona de couro avermelhado e vejo lá fora campos de trigo e soja, sem fim. Minhas costas doem e pensei que não fosse mais dormir, enquanto contava os raros postes de luz no caminho. De repente adormeci, as horas passaram e como mágica surge a primeira manhã de uma longa viagem de três dias.
Não é minha primeira “Road Trip” – conceito que incorporei em minha vida para designar viagens continentais de carro ou de ônibus barato. Quando parti para Chicago no velho Greyhound já havia feito sozinho e acompanhado, de carro e em outros ônibus, algumas longas aventuras como a de Fort Myers, na Flórida até Nova Iorque, cortando nove estados. Em outro verão cheguei às montanhas do Tennessee saindo de Charleston, na Carolina do Sul, avançando ao oeste. Foram incontáveis os pequenos trajetos em que da janela de um ônibus observei as pequenas cidades, montanhas e riachos de Nova Iorque, cortando a Nova Inglaterra.
A clássica história americana é a fuga, ou a reinvenção causada por uma longa jornada, como a rota 66 que vai de Chicago a Los Angeles, cortando desertos e plantando histórias fabulosas em nossa imaginação. Essa ainda não consegui fazer, mas não há pressa porque as viagens longas pelas estradas não são roteiros turísticos apenas – são registros de mudanças profundas em minha vida. Não faço nenhum trajeto apenas para conhecer lugares – os lugares passam por mim por algum motivo.
Devo ser, de alguma maneira, um “Vagabond” sentimental – quem faz uma viagem para costurar sua vida com os lugares por onde passa. O termo é antigo mas foi forjado no contexto das viagens sobre rodas, entre 1915 e 1924, quando os inventores Henry Ford, Thomas Edison, Harvey Firestone, saíram para viagens publicitárias e de negócios, mas também de inspiração, leitura e descanso. Eles se intitulam “the Vagabonds” e de alguma maneira moldaram as “Road trips” para sempre, motorizando a drapetomania norte-americana, esse incrível impulso incontrolável por vagar e no caso, viagens sobre rodas.
Foi em Fort Myers que ouvi falar pela primeira vez da existência deles como viajantes estruturados e de certa forma entendi que a dimensão continental do país favorece esses impulsos e curiosidades – e também a transformação na viagem como um elemento e marco na mudança de vida.
As viagens pelas estradas norte-americanas há décadas – e desde antes dos “vagabonds” inspiraram canções, livros e filmes e seguem retratando vidas em transformação. Foi lá mesmo no sudoeste da Flórida, no calor das águas do Golfo do México, onde também vivi por um tempo, que registrei uma imagem inesquecível. A estátua de Thomas Edison e Ford, sentados à beira de um riacho, lendo e pensando na vida.
Onde estava mesmo? Ah, em um ônibus, cortando plantações. No meu mergulho em direção a Chicago. A cidade sempre me fascinou e naquele verão a convite de um amigo decidi que seria a hora de conhecer os belos canais de água azul do Lago Michigan que cortam a cidade, o metrô suspenso que como uma serpente percorre e contorna edifícios. A janela do ônibus está envelhecida e um prisma colorido se esparrama no meu colo. Parece com a televisão que tínhamos nos anos 70, que recebia uma tela colorida para simular uma vida a cores. Cavalos corriam no campo em verde, azul e vermelho, os atores alternavam cores. Olho para as plantações e vejo um rapaz cavalgando, como na novela “Irmãos coragem” da minha infância, uma terra plana cheia de cowboys e vento.
Naquela viagem, partindo da estação de ônibus da Oitava Avenida, acordei na primeira noite em South Bend, Indiana. O ônibus circulou por uma praça e parou em um pequeno aeroporto local. “Meia hora” gritou o motorista.
North Jackson, Ohio. É o meio do caminho, diz o motorista. Cortamos a I-78 através da Pennsylvania Dutch, passando por Hershey ( que fabrica o famoso chocolate), Harrisburg, aos pés das montanhas Allegheny. Logo depois vi as torres de Cleveland, paramos em uma pequena estação de gasolina. Vi tomates vermelhos imensos na beira da estrada, uma senhora com um chapéu de palha, crianças brincando com galhos secos, duelando. A estrada é de uma solidão imensa, pelo menos pra mim, acostumado em grandes cidades. Por minutos me sinto vivendo ali, assistindo a noite cair, e volto sem ar, tomado por um sentimento de que estaria perdendo algo, quem sabe a vida. Alterno momentos em que desejo a extrema solidão daquelas casas distantes no horizonte, ao desespero do choro no meio da noite, querendo me livrar de tudo aquilo e ver desesperadamente as luzes das cidades. Imagino quantas pessoas vivem ambas as sensações.
Meus olhos ficam bem abertos e atentos. Cheguei no início da manhã do terceiro dia de viagem. Cansado, mas curioso. Sei que as estações de ônibus e de trem ficam sempre em áreas indesejadas – cercadas de pedintes, moradores de rua e pessoas perdidas em busca de algo. Não foi diferente em Chicago naquele verão. O sol já estava forte às cinco da manhã, anunciando um dia terrivelmente quente.
Chicago me lembra o Rio de Janeiro. Em alguns lugares, como as praias do lago Michigan, a água é verde escura e de poucas ondas, as curvas idênticas às da enseada de Botafogo e os parques, como no aterro, reúnem trabalhadores sem camisa, famílias compartilhando sanduíches de mortadela e coca cola. Em outras áreas a cidade é uma mistura de estilos, com monumentos ultra modernos, futuristas, um feijão metálico gigantesco, com prédios art deco, clássicos europeus e também becos e vielas das famosas china towns. Meu amigo me alerta: cuidado com alguns quarteirões, tomados por sem teto e drogados, mas veio outra lembrança do Rio, de trechos da avenida Brasil, onde olhares curiosos te revistam a alma e que patrulhas da polícia provocam medo. Quem vem da periferia de uma grande cidade latino-americana não se espanta com a pobreza e ou violência – nem com as pessoas sentadas em banquinhos na calçada, falando da vida e comendo churrasco. Perto de onde me hospedei, cruzei por crianças brincando na rua, carros luxuosos abertos tocando música alta, homens magros e barbudos vendendo drogas – todos embalados por rap e solidão.
Não há como não comparar as cidades que visitamos. No fundo as periferias são todas parecidas, lugar de exclusão e vida difícil. Olho para as crianças que brincam ao som de tiros ao longe, garotos de bicicleta fazendo entrega, pedalando forte em busca de sobrevivência. Eu poderia ter crescido ali – no sul de Chicago – e de certo seria algo semelhante ao que sou, porque somos a soma dessas experiências e todas aquelas me parecem muito próximas, familiares. Já não sei mais o que foi minha infância, ou os filmes que assisti, que me ajudaram a registrar as casas e o desenho das ruas, das árvores, calçadas mal cuidadas, olhares sem esperança. Muitos jamais sairão de lá. Outros, como eu, marcados para sempre por essas memórias, que encontrarão em outras tantas cidades as mesmas cenas amargas. A casa dos meus pesadelos ainda é a da infância – e ela hoje pode estar em qualquer dessas cidades que transito – todas possuem a solidão e a dor de vidas despedaçadas.
Grandes lagos, Baía da Guanabara, South Side, South Bend – todos fragmentos se unem, como a luz que invade o ônibus, e se espalha em meu corpo. A Road Trip não tem fim, mas as imagens parecem ser as mesmas, recicladas da infância. Chicago agora parece com uma Chicago minha, que incorporei a todas outras tantas experiências sensoriais. No meu próximo sonho quem sabe o ranger da porta pode me levar a uma grande escada de madeira, de uma casa vitoriana. Favela, asfalto, um caleidoscópio de estradas vazias, como a primeira que cortava os pampas e me levou a Buenos Aires, a que cortou o planalto para me levar a Belém.
A road trip não é só uma experiência incorporada ao imaginário norte-americano. Hoje é uma cultura que corta tribos e desertos, dá vida a pequenos vilarejos. Quando parti de South Bend em indiana uma menina correu atrás do ônibus, dando adeus, na sua inocência, de que mais um estaria partido. Fiquei por momentos imaginando o dia que ela entrará em um desses, rumo a uma grande cidade, cheia de sonhos. Em todos os lugares por onde passei deixei um pouco de mim e carrego aqueles olhares e expressões dos rostos que eu vi nas ruas. É uma grande experiência humana percorrer um país – e como dizia o escritor mexicano Octavio paz “O que põe o mundo em movimento é a interação das diferenças, suas atrações e repulsões; a vida é pluralidade, morte é uniformidade.”